sábado, 1 de janeiro de 2011

Todesfuge

Prometi há muito uma tradução de Mortefuga, do poeta romeno Paul Celan (1920-1970). Antes, pequena nota biográfica sobre o poeta.
Nome proeminente da poesia no pós-Guerra, Celan possuía o raro espírito febril qual Baudelaire: a habilidade de encontrar o belo no feio (ou "expressar o feio de maneira bela", na formulação decadente), de refletir sobre o demente, de jogar alguma luz na massa umbrosa das indústrias - no caso, da nódua cinzenta ascendente dos corpos carbonizados nos campos de concentração. Traduziu Kafka, Frost, Ungaretti, Nerval, Mandelstam, Dickinson. Seu poema mais famoso, Todesfuge, foi publicado em 1948, circulado desde 1944. Tentativa de ritmar o horror do Holocausto, versos calcados no Sein-zum-Tod heideggeriano, deveras influenciados por Trakl (Alemanha anoitece...), e os quais estarreceram até Adorno, este que havia então declarado a "morte da poesia". Poema de difícil tradução devido à carga rítmica (polifônica, vozes contrapostas no que variam um mesmo tema como a fuga musical) e conceitual (saltam imagens bíblicas e da tradição medieval-cristã), Mortefuga sintetiza o paideuma da Alemanha destruída após a derrota hitlerista. Fala por si só. A quem, todavia, aprouver maiores informações, procurem o texto de Theo Buck na edição comentada de Todesfuge.
Algumas liberdades na tradução - ex., 'te temos' ao invés de um 'bebemos' para traduzir 'trinken'; a supressão dos pronomes explícitos no que desloquei o sujeito para o interior dos verbos; e 'solfejar' para abarcar a gama de significados de 'spielen' (tocar, brincar, etc.) - se auto-justificarão, espero.
O poeta descansa no Cemitério de Thiais, na grande Paris.


Paul Celan aos 18 anos, em seu passaporte (1938)

TODESFUGE

Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken
wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete
er schreibt es und tritt vor das Haus und es blitzen die Sterne er pfeift seine Rüden herbei
er pfeift seine Juden hervor läßt schaufeln ein Grab in der Erde
er befiehlt uns spielt auf nun zum Tanz

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich morgens und mittags wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete
Dein aschenes Haar Sulamith wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng

Er ruft stecht tiefer ins Erdreich ihr einen ihr andern singet und spielt
er greift nach dem Eisen im Gurt er schwingts seine Augen sind blau
stecht tiefer die Spaten ihr einen ihr andern spielt weiter zum Tanz auf

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags und morgens wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith er spielt mit den Schlangen
Er ruft spielt süßer den Tod der Tod ist ein Meister aus Deutschland
er ruft streicht dunkler die Geigen dann steigt ihr als Rauch in die Luft
dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt man nicht eng

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags der Tod ist ein Meister aus Deutschland
wir trinken dich abends und morgens wir trinken und trinken
der Tod ist ein Meister aus Deutschland sein Auge ist blau
er trifft dich mit bleierner Kugel er trifft dich genau
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
er hetzt seine Rüden auf uns er schenkt uns ein Grab in der Luft
er spielt mit den Schlangen und träumet der Tod ist ein Meister aus Deutschland

dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith

*

MORTEFUGA

O preto lácteo matino lhe temos à tarde
lhe temos à ceia à aurora lhe temos à noite
lhe temos e temos
cavamos uma cova no vento não será apertado
um homem habita na casa solfeja serpentes e escreve
escreve e a Alemanha anoitece em ouro seus cachos Margarete
escreve e afora cintilam estrelas e atina os cães afurnados
atina em filas Judeus quais cavam uma cova na terra
comanda as furnas solfejam em dança.

O preto lácteo matino te temos à noite
te temos à aurora à ceia te temos à tarde
te temos e temos
um homem habita na casa solfeja serpentes e escreve
escreve e a Alemanha anoitece em ouro seus cachos Margarete
em cinza seus cachos Sulamita cavamos uma cova no vento não será apertado

voceja cavai fundo na terra e acá e além cantai e dançai
levita o ferro em sua cinta e o veleja seus olhos azuis
cavai-vos fundo a espátula e acá e além o baile dançai

O preto lácteo matino te temos à noite
te temos à ceia à aurora te temos à tarde
te temos e temos
um homem habita na casa em ouro seus cachos Margarete
em cinza seus cachos Sulamita solfeja serpentes
voceja e cantem terna é a morte na Alemanha a mestra é a morte
voceja e eivam negras as cordas qual fumo ascendereis ao ar
terás uma cova nas nuvens não será apertado

O preto lácteo matino te temos à noite
te temos à ceia na Alemanha a mestra é a morte
te temos à tarde à aurora te temos e temos
na Alemanha a mestra é a morte seus olhos azuis
mira em ti balas de chumbo sua mira conduz
um homem habita na casa em ouro seus cachos Margarete
atira-nos cães e concede-nos uma cova no ar
solfeja serpentes e trama na Alemanha a mestra é a morte

Em ouro seus cachos Margarete
Em cinza seus cachos Sulamita

*

Há uma boa tradução de Paul Celan para o inglês, por Michael Hamburger - mesmo autor do hoje clássico The Truth of Poetry -, em Poems, ed. bilíngue (New York: Persea Books, 2002). Em alemão, a edição curada por Barbara Wiedemann, Die Gedichte: Komentierte Gesamtausgabe (Berlin: suhrkamp Verlag, 2005) é, das disponíveis no mercado atual, a mais completa.

Este texto - qual muitos que virão - versou sobre a morte.
No que findou 2010, findou a década dos '00s - decênio estúpido como boa parte dos anos iniciais de um século. Anos que nos roubaram Saul Bellow, Will Eisner, Czeslaw Milosz e Billy Wilder. O mofo da fama permanece todavia. É a velha história do Cavaleiro Verde do Sir Gawain, comentado recentemente por Contardo Calligaris na Folha de São Paulo: a velha década ainda carregará sua cabeça de barbas verde-pântano por muito, ainda no que desfiará a lâmina de seu machado nas jovens nucas dos jovens anos.

Até que o Áufido passe, e varra todas as covas, e toda fumaça.
(O blog voltará com o despertar do Euroclidião).

Nenhum comentário:

Postar um comentário