quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Sea grapes



Uvas-da-praia


A vela que se lança à luz,

cansada das ilhas,
uma escuna singrando o Caribe


vai ao lar, pode ser Odisseu

indo ao lar no Egeu;
o pai, o marido,


a saudade, sob sulcadas uvas amargas, é como

o nome de Nausicaa que ao adúltero ecoa
nos gritos das gaivotas.


A ninguém isso traz paz. A guerra antiga

entre a obsessão e a responsabilidade não
acabará nunca e foi sempre a mesma


ao andarilho da escuma, ao que fica na costa

queimando as solas em direção ao lar, desde
que Tróia sua última chama suspirou,


e o seixo que o gigante cego içou da fossa, donde

do turbilhão emergem os grandes hexâmetros às
conclusões da maré exausta.


Os clássicos talvez consolem. Mas não o suficiente.


*


Sea grapes


That sail which leans on light,
tired of islands,
a schooner beating up the Caribbean
for home, could be Odysseus,
home-bound on the Aegean;
that father and husband's
longing, under gnarled sour grapes, is like
the adulterer hearing Nausicaa's name in
every gull's outcry.
This brings nobody peace. The ancient war
between obsession and responsibility will
never finish and has been the same
for the sea-wanderer or the one on shore now
wriggling on his sandals to walk home, since
Troy sighed its last flame,
and the blind giant's boulder heaved the trough from
whose groundswell the great hexameters come to the
conclusions of exhausted surf.
The classics can console. But not enough.


*   *   *   *   *



Derek Walcott nasceu em 1930 em Castries, em Santa Lúcia, no Caribe. Sua poesia completa (até 1984) e um Selected poems estão ambos disponíveis pela faber and faber.

Sea grapes, um de seus poemas mais conhecidos, foi originalmente publicado no livro homônimo de 1976.


A imagem é de uma ânfora, datada de 520 a.C., originária da Lacônia, e retrata Odisseu cegando com uma lança o gigante Polifemo.

No que eu também me lembro de Kaváfis, na busca pela Ítaca, na cidade que nos segue não importa aonde, na dor de fitar ressaca e só ver maré. A quem se dá afogar-se no mundo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A Love Poem


Um Poema de Amor

todas as mulheres
todos os seus beijos as
maneiras diferentes de amar e
falar e precisar.

suas orelhas todas elas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.

geralmente
as mulheres são muito
calorosas elas me lembram
pão com manteiga com a manteiga
derretida
nele.

há um jeito de
olhar: elas foram
usadas elas foram
enganadas. não sei ao certo o que
fazer por
elas.

eu sei
cozinhar bem e sei
escutar bem
mas nunca aprendi a
dançar - estava então ocupado
com coisas maiores.

mas eu aproveitei suas diferentes
camas
fumando cigarros
olhando pro
teto. eu não fui cruel tampouco
injusto. só um
aprendiz.

sei que todas têm esses
pés e de pés descalços elas atravessam o quarto e
eu observo suas nádegas envergonhadas no
escuro. eu sei que elas gostam de mim, algumas até
me amam
mas eu amo muitas
poucas.

algumas me dão laranjas e pílulas vitamínicas;
outras falam timidamente da
infância e dos pais e
de paisagens; algumas são quase
loucas mas nenhuma delas é sem
sentido; algumas sabem
amar, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre são
as melhores em outras
coisas; cada uma tem limites como eu tenho
limites e nós conhecemos
um ao outro
logo.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos
os tapetes as
fotos as
cortinas, é
algo como uma igreja só
às vezes se
ri.

aquelas orelhas aqueles
braços aqueles
cotovelos aqueles olhos

contemplativos, o afeto e
a carência eu fui
tomado eu fui
tomado.


*

A Love Poem

all the women
all their kisses the
different ways they love and
talk and need.

their ears they all have
ears and
throats and dresses
and shoes and
automobiles and ex-
husbands.

mostly
the women are very
warm they remind me of
buttered toast with the butter
melted
in.

there is a look in the
eye: they have been
taken they have been
fooled. I don't quite know what to
do for
them.

I am
a fair cook and a good
listener
but I never learned to
dance - I was busy
then with larger things.

but I've enjoyed their different
beds
smoking cigarettes
staring at the
ceiling. I was neither vicious nor
unfair. only
a student.

I know they all have these
feet and barefoot they go across the floor as
I watch their bashful buttocks in the
dark. I know that they like me, some even
love me
but I love very
few.

some give me oranges and vitamin pills;
others talk quietly of
childhood and fathers and
landscapes; some are almost
crazy but none of them are without
meaning; some love
well, others not
so; the best at sex are not always the
best in other
ways; each has limits as I have
limits and we learn
each other
quickly.

all the women the
women all the
bedrooms
the rugs the
photos the
curtains, it's
something like a church only
at time there's
laughter.

those ears those
arms those
elbows those eyes

looking, the fondness and
the wanting I have been
held I have been
held.

*  *  *  *  *

Publicado originalmente em War All the Time, de 1984.
A polaróide é da fotógrafa norte-americana Francesca Woodman (1958-1981).

Bukowski as entendia.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

it is not much


não é muito

eu suponho como outros que
vim pelo fogo e pela espada,
pelo amor frustrado,
pela cara no muro, bêbado no mar,
e eu escutei a música simples da água corrente
na banheira
e quis me afogar
mas não podia de jeito nenhum suportar
que outros carregassem meu corpo três andares abaixo
por entre as boquetas curiosas dessas biscates;
a psyche foi queimada
e nos deixou insensatos,
o mundo tem sido mais escuro que as luzes apagadas
num armário cheio de morcegos famintos,
e o uísque e o vinho penetraram nossas veias
quando o sangue era fraco demais para fluir;
e acontecerá com outros,
nossos momentos felizes serão poucos
porque temos um senso crítico
e quase nunca nos deixamos enganar pelo riso;
insetos montam no pára-brisa
mas conseguimos ver além
uma paisagem desolada
e que aproveitem seu momento;
só pedimos que leopardos guardassem
nossos sonhos esquálidos.
certa vez estava eu lá deitado num
hospital branco
para os moribundos e o moribundo
eu, onde algum deus mijou uma chuva de
razão para fazer as coisas crescerem
só para morrerem, onde de joelhos
orei por LUZ,
orei por l*u*z,
e orando
rastejei como um verme cego na
teia
onde fios de vento colaram atrás da minha mente
e então morri de pena
do Homem, de mim mesmo,
e uma cruz sem pregos,
vendo cheio de medo como
o porco se esbalda em seu chiqueiro, peida,
pisca, e come.

*

it is not much

I suppose like others
I have come through fire and sword,
love gone wrong,
head-on crashes, drunk at sea,
and I have listened to the simple sound of water running
in tubs
and wished to drown
but simply couldn't bear the others
carrying my body down three flights of stairs
to the round mouths of curious biddies;
the psyche has been burned
and left us senseless,
the world has been darker than lights out
in a closet full of hungry bats,
and the whiskey and wine entered our veins
when blood was too weak to carry on;
and it will happen to others,
and our few good times will be rare
because we have a critical sense
and are not easy to fool with laughter;
small gnats crawl our screen
but we see through
to a wasted landscape
and let them have their moment;
we only asked for leopards to guard
our thinning dreams.
I once lay in a
white hospital
for the dying and the dying
self, where some god pissed a rain of
reason to make things grow
only to die, where on my knees
I prayed for LIGHT,
I prayed for l*i*g*h*t,
and praying
crawled like a blind slug into the
web
where threads of wind stuck against my mind
and I died of pity
for Man, for myself,
and a cross without nails,
watching in fear as
the pig belches in his sty, farts,
blinks, and eats.


*   *   *   *   *

Charles Bukowski nasceu em Andernach, Alemanha, em 1921, e morreu de leucemia em 1994, em Los Angeles. Maldito, poeta das ruas e dos malogros, da melancolia furiosa e contemplativa,  escreveu como nenhum outro a frustração e a angústia daquele geração perdida dos poemas de Ginsberg, I saw the best minds of my generation. Seus versos dilacerados, abruptos, são como navalhas enferrujadas e imundas que entrecortam olhos e garganta. Seus poemas são como as baratas sem as quais a cidade em que vivemos sequer existiria. Bukowski encarna o lado imundo, negligenciado e indigente, do homem e da cidade, nossos semelhantes, nossos irmãos.

Sua poesia está reunida em The pleasures of the damned (New York: HarperCollins, 2007); it is not much é do último livro The people look like flowers at last (As pessoas se parecem finalmente com flores), de 2007.
O escritor é publicado no Brasil pela L&PM.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

mind and heart



espírito e coração

incompreensivelmente estamos sozinhos
sempre sozinhos
e é pra ser desse
jeito,
nunca foi pra ser
de outro jeito -
e quando a luta pela vida
começar
a última coisa que desejo ver
é
um círculo de rostos humanos
pairando sobre mim -
melhor só meus velhos amigos,
os muros do meu eu,
que só eles estejam lá.

eu estive sozinho mas raramente
solitário.
eu satisfiz minha sede
no poço
do meu eu
e esse vinho era bom,
o melhor que já provei,
e hoje de noite
sentado
olhando pra dentro do escuro
eu agora finalmente entendo
o escuro e o
claro e tudo
que há no meio.

paz de espírito e coração
chega
quando aceitamos o que
é:
tendo
nascido nesta
vida estranha
precisamos aceitar
a aposta vã de nossos
dias
e sentir alguma satisfação no
prazer de
deixar tudo para
trás.

não chore por mim.

não fique triste por mim.

leia
o que escrevi
então
esqueça
tudo.

beba do poço
do seu eu
e comece
de novo.

*

mind and heart

unaccountably we are alone
forever alone
and it was meant to be
that way,
it was never meant
to be any other way -
and when the death struggle
begins
the last thing I wish to see
is
a ring of human faces
hovering over me -
better just my old friends,
the walls of my self,
let only them be there.

I have been alone by seldom
lonely.
I have satisfied my thirst
at the well
of my self
and that wine was good,
the best I ever had,
and tonight
sitting
staring into the dark
I now finally understand
the dark and the
light and everything
in between.

peace of mind and heart
arrives
when we accept what
is:
having been
born into this
strange life
we must accept
the wasted gamble of our
days
and take some satisfaction in
the pleasure of
leaving it all
behind.

cry not for me.

grieve not for me.

read
what I've written
then
forget it
all.

drink from the well
of your self
and begin
again.


*   *   *   *   *

A poesia quase completa de Charles Bukowski foi editada por John Martin em The pleasures of the damned (Nova York: HarperCollins, 2007). mind and heart é de Come on in! (2006), penúltimo livro de poemas do autor.

sábado, 8 de outubro de 2011

Memnona si mater

Eis a nona elegia do livro terceiro dos Amores de Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.), o emocionante θρῆνος dedicado a Álbio Tibulo (55 a.C. - 19 a.C.), iniciado numa tarde na biblioteca e finalizado em três madrugadas desbravadas com Lewis & Short e o vetusto Saraiva. Tentei adaptar, como o fez Castilho em alguns versos dos Fasti & tradutores mais, o dístico elegíaco - hexâmetro/pentâmetro dactílico, ou "o verso heróico" e um "hexâmetro cataléptico" (visite a βιβλιοθήκη de Fócio, codex CCXXXIX na χρηστομαθία de Proclo) em dísticos de alexandrinos/decassílabos, sejam acentuados na sexta, ou na quarta/oitava. Não obedeci à ordem dactílica, aqui o verso é flexível, maioria das vezes iâmbico: transpor sessenta-e-oito versos de Ovídio em metros regulares por ora já me é dificuldade suficiente.

scilicet hanc legem nentes fatalia Parcae / stamina bis genito bis cecinere tibi.
[sim, este ordo fatais rodopiando as Parcas / as rocas bitoaram a ti bigênito]

* * * * *

AMORES III.9
Se a mãe Mêmnon chorou, e a mãe chorou Aquiles,
e tristezas raptaram deusas magnas,
em pranto solta os cachos teus, ó Elegia!
ai, agora teu nome soará alto!
o poeta da sanha, fama tua, Tibulo
arde na pira nua, o corpo frio.
ai ai, filho de Vênus leva a aljava torta,
em cacos arco e flecha, a luz sem luz!
vai, olha, de asas baixas tomba o miserando,
lhe pesa o coração no peito nudo!
afogam lágrimas na nuca os descabelos,
e as vozes abatidas num soluço!
conta-se, belo Julo, do domo assim partiu

que as exéquias cobriu de Enéias teu
;
Vênus assim se fende de Tibulo morto,
como outrora fendeu-se a coxa adônea!
somos porém chamados de "divinos", "sacros",
e há aqueles que nos tomam como numes.
sim, todo o sacro a Morte insidiosa profana,
arrasta a todos com obscuras garras!
a que o pai, a que a mãe valeu a Orfeu Ismário?
a que valor seu canto abranda-feras?
o mesmo pai a Linos em matas alheias
na lira "ai Linos!" só contratoava;
a ele soma o Meônio, o qual, fonte perene,
os vates amamenta com os veios
da Piéria: ele o Averno negro também bebe!
os cantos logram sós fugir da pira.
de vates a obra, em ruínas afamada Tróia,
reurdida a tela, ardil noturno, vivem;
longo será de Nêmesis, de Délia o nome,
uma a dor recente, esta o prima amada.
a que vos vale o sacro? e o sistro, a que vos serve?
a que no leito esbanjam madrugadas?
a sina má (perdoai o tom!) se os bons abate,
agito-me em pensar que não há deuses!
se vives mesmo em pio, morres; te louva os numes,
dos templos Morte afunda ao reles chão!
a poesia sobrevive! e ai que jaz Tibulo!
dele resta mais nada que uma urna!
acaso a ti tomaram, vate, a ti temeram
sorver as chamas fúnebres teu peito?
pudessem dos celícolas os áureos templos
brasar, que sacrilégio tanto viram!
virou a face a deusa dos montes Erícios,
e conta-se que em lágrimas desfez-se!
tanto entre nós morreu, que nas terras Feácias
sepulto fosse, ignoto, em solo vil.
aqui cerrou a mãe do lívio os olhos úmidos
e às cinzas deu as últimas ofertas;
aqui à partilha veio a irmã da dor materna,
esfarrapar as tranças desgrenhadas,
e aos teus deitaram beijos Nêmesis e a prima
solitárias que as chamas não pereçam!
Ai, Délia, 'Eras feliz outrora, tu me amaste!
Viveste, enquanto eu era a brasa tua!'
E Nêmesis, ai, 'A ti que são as dores minhas?
a mim foi que estendeu a mão mortiça!'
se então sobrar de nós senão o nome e a sombra,
Tibulo viverá no vale Elísio!
virás a seu encontro, da hedera cingido,
jovem Catulo, o douto Calvo teu;
e tu também, se falso é o fatricídio, pródigo
Galo que tanto deste suor e sangue!
se a sombra tem feição,
tua sombra é sócia deles!
culto Tibulo, mais alto cantaste!
ossos, ai, rogo, agora cala, urna, descansa,
e seja leve a relva às cinzas tuas!


*

AMORVM LIBER III.IX

Memnona si mater, mater plorauit Aquillem,
et tangunt magnas tristia fata deas,
flebilis indignos, Elegia, solue capillos;
a, nimis ex uero nunc tibi nomen erit!
ille tui uates operis, tua fama, Tibullus
ardet in exstructo corpus inane rogo.
ecce puer Veneris fert euersamque pharetram
et fractos arcus et sine luce facem;
aspice, demissis ut eat miserabilis alis
pectoraque infesta tundat aperta manu.
excipiunt lacrimas sparsi per colla capilli,
oraque singultu concutiente sonant.
fratris in Aeneae sic illum funere dicunt
egressum tectis, pulcher Iule, tuis.
nec minus est confusa Venus moriente Tibullo
quam iuueni rupit cum ferus inguen aper.
at sacri uates et diuum cura uocamur,
sunt etiam qui nos numen habere putent.
scilicet omne sacrum Mors importuna profanat;
omnibus obscuras inicit illa manus.
quid pater Ismario, quid mater, profuit Orpheo,
carmine quid uictas obstipuisse feras?
et Linon in siluis idem pater 'aelinon' altis
dicitur inuita concinuisse lyra.
adice Maeoniden, a quo ceu fonte perenni
uatum Pieriis ora rigantur aquis;
hunc quoque summa dies nigro summersit Auerno.
defugiunt auidos carmina sola rogos.
durat opus uatum, Troiani fama laboris
tardaque nocturno tela retexta dolo:
sic Nemesis longum, sic Delia nomen habebunt,
altera cura recens, altera primus amor.
quid uos sacra iuuant? quid nunca Aegyptia prosunt
sistra? quid in uacuo secubuisse toro?
cum rapiunt mala fata bonos, (ignoscite fasso)
sollicitor nullos esse putare deos.
uiue pius: moriere; pius cole sacra: colentem
Mors grauis a templis in caua busta trahet.
carminibus confide bonis: iacet ecce Tibullus;
uix manet e tanto, parua quod urna capit.
tene, sacer uates, flammae rapuere rogales,
pectoribus pasci nec timuere tuis?
aurea sanctorum potuissent templa deorum
urere, quae tantum sustinere nefas.
auertiti uultus, Erycis quae possidet arces;
sunt quoque qui lacrimas continuisse negant.
sed tamen hoc melius, quam si Phaeacia tellus
ignotum uili supposuisset humo.
hic certe madidos fugientis pressit ocellos
mater et in cineres ultima dona tulit;
hic soror in partem misera cum matre doloris
uenit inornatas dilaniata comas,
cumque tuis sua iunxerunt Nemesisque priorque
oscula nec solos destituere rogos.
Delia discedens 'felicius' inquit 'amata
sum tibi: uixisti, dum tuus ignis eram.'
cui Nemesis 'quid' ait 'tibi sunt mea damna dolori?
me tenuit moriens deficiente manu.'
si tamen e nobis aliquid nisi nomen et umbra
restat, in Elysia ualle Tibullus erit.
obuius huic uenies hedera iuuenalia cinctus
tempora cum Caluo, docte Catulle, tuo;
tu quoque, si falsum est temerati crimen amici,
sanguinis atque animae prodige Galle tuae.
his comes umbra tua est, si qua est modo corporis umbra;
auxisti numeros, culte Tibulle, pios.
ossa quieta, precor, tuta requiescite in urna,
et sit humus cineri non onerosa tuo.

* * * * *

"Espelho da decadência romana", Públio Ovídio Nasão nasceu em 43 a.C. em Sulmona, na Itália central. Foi o último dos grandes poetas do período augustano, dentre eles o mais jovem. De verso fluído e fácil e ligeiro, diversos creram frívolo e flébil, lascivo no juízo de Quintiliano¹, artífice do verso, estendeu a mão a vários metros e gêneros: autorou epopéia (as Metamorfoses), elegias (Amores), epístolas (as Heróides, as Tristia, as Do Ponto), tragédia (uma Medéia, hoje perdida); escreveu poesia amorosa, épica, didática, de teor político. Foi poeta muito lido no medievo a despeito de sua (im)piedade pagã; Dante, Petrarca e Chaucer são repositários do italiano, tal qual tardiamente Shakespeare, Goethe, Stefan George, E. Pound. Morreu no exílio, figura à margem, em 17.
Esta tradução baseia-se no texto publicado em P. Ovidi Nasonis Amorum Libri da Oxoniensis, (ed. E. J. Kenney, 1995). A imagem é afresco de Herculano; o dístico fatídico é da epístola terceira do quinto livro das Tristia, vv.25-26.
Vez outra, recomendamos as eds. da Belles Lettres (trad. Henri Bornecque, 1930) e da Loeb Classical Library (trad. Grant Showerman, 1914 e revisada por G. P. Goold). Peter Green, tradutor de Catulo, versou Ovídio em inglês nos The Erotic Poems da Penguin.
Os Amores foram recentemente reunidos à Arte de Amar na coleção Companhia das Letras-Penguin, no luso de Carlos Ascenso André, anteriormente publicadas em dois tomos pela Cotovia. Nela há notas do tradutor e útil introdução acerca da vida de Ovídio, por Peter Green, a mesma da ed. inglesa; o português não trai o conteúdo, mesmo se bastante prosaico.
O primeiro livro dos Amores recebeu cuidadosa recriação de Lucy Ana de Bem, via hedra. Resta esperarmos os dois restantes, se vindo.
Mais antigo, Antônio Feliciano de Castilho traduziu os Amores, em conjunto com A Arte de Amar e os Fastos. Estes últimos, ímpares na tradução oitocentista de clássicos, merecem reedição criteriosa qual Odorico Mendes. Consultei suas soluções para a elegia III.9, transpostas em quintilhas de decassílabos rimados. Não funciona. Esvai-se a pungência do embate característico do verso elegíaco - notem, no poema, a incoerência entre a poesia, supostamente imortal, e o corpo de Tibulo morto: o poeta nega-se a estabelecer uma conclusão; Castilho também transforma-o num mero artífice do verso, um jogral, um jongleur. Ovídio foi sim virtuoso, erudito parelho de Propércio e Horácio, formalmente o mais audacioso do latim clássico. No entanto e além, no que a força de Virgílio vem do Estado e da História; e a de Horácio do ofício apícola, também da natureza bruta & pindárica; a de Ovídio, das emoções humanas. Em Roma foi ele o grande poeta do patético.

[1] Elegia quoque Graecos provocamus, cuius mihi tersus atque elegans maxime videtur auctor Tibullus. sunt qui Propertium malint. Ovidius utroque lascivior, sicut durior Gallus. (Institutio Oratoria, X.I.93)
[Também rivalizamos os gregos na elegia, donde nosso autor mais polido e elegante, parece-me, é Tibulo. Há aqueles que preferem Propércio. Ovídio é mais lascivo que ambos, ao passo que Galo é mais rude.]