sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Moby-Dick, c.XXXVII-XL

Justificar
'Então Deus preparou um peixe gigante para engolir Jonas. E na barriga do peixe Jonas ficou por três dias e três noites.' (Livro de Jonas, 1:17)

A pintura do Spouter Inn, descrita por Melville no c.III e recriada por Aaron Zatklin

Que Herman Melville moldara boa parte do Moby-Dick segundo princípios da dramaturgia, há muito já assinalaram os críticos; deste palco, que é o mundo, atuam vozes do Velho Testamento, de Shakespeare, e daquele poeta de grande sensibilidade dramática, Milton - não - não necessitamos buscar a crítica; basta ler o c. CVII, 'O carpinteiro', de Moby-Dick; este romance que a tudo abrange - súmula de toda artimanha que pode haver no romance - novela - conto - journey book. E, a despeito de Mortimer J. Adler, improvável acertar sobre o que é Moby-Dick: pelos olhos de Ismael, a viagem do Pequod e seu capitão enlouquecido em busca de vingança contra a baleia branca? A teimosia fatal do homem em impôr sua vontade contra o destino? A desilusão romântica do homem frente a violência da natureza? Um tratado de cetologia? Uma 'obra filosófica disfarçada de literatura' (Lewis Mumford)? A busca platônica por Deus, condenada ao fracasso? A procura de redenção num mundo condenado ao Apocalipse? Um microcosmo do cenário político oitocentista, com a América lutando pelo direito de figurar entre as democracias européias? Uma crítica velada à indústria (the whale-fishery) como 'Espírito' que agrilhoa o homem? Ahab como profeta do Leviatã? Bastião do abolicionismo? Arauto do capitalismo? É Ahab, Ahab? Mais. The great American novel, indeed. O século XIX norte-americano cabe todo em Moby-Dick, embora esta spermacetti não seja, a princípio, diminuta, em size e scope.
Traduzi a duros (& divertidos) cálamos os capítulos da primeira 'passagem dramática' do livro. Ismael sai de cena e entram, com vozes próprias, Ahab - Starbuck - Stubb - e os marujos. Noutras feitas diversas, Melville retomará este artifício dramático; equivale dizer que, embora a aventura seja contada por Ismael, lhe parecem escapar seus demais companheiros, seus respectivos diálogos. Ou trata-se do mesmo Ismael construindo ele-mesmo tais personagens afim de narrar a jornada de Ahab como um herói trágico, conforme aquele diz no início (c. XVI, 'O navio'). Atento para o estilo brincalhão com o qual verti estas passagens - não pretendem ser definitivas, senão exercício literário. Diferente de Melville, e na tentativa de salientar aos marujos cada qual uma identidade única (o que não funcionaria com meros coadjuvantes na peça), mexi bastante no registro dialógico e no vocabulário. De minha preferência foi transcriar Stubb, meu personagem favorito da trama. As linhas quase que fluíram. Afinidade do ânimo groucho-marxista.
Antes, a little on the book itself. Moby-Dick está disponível em inúmeras edições populares, pela Barnes & Noble, Penguin, Dover, Oxford e Wordsworth Library. Àqueles em busca de aparato crítico, recomendo a versão da Norton (com as cartas do autor, glossário ilustrado de termos náuticos, depoimentos e ensaios críticos), ed. Hershel Parker & Harrison Hayford; ou a anotada da Longman. Os volumes da Library of America - a Pléiade norte-americana - são standard para colecionadores. Em português, há o recém-publicado livro da Cosac Naify, trad. Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza; a julgar pela tradução de Hirsch para Bartleby, parece-me competente, embora pouco poética. E Moby-Dick, sem dúvidas, é prosa poética nada devedora de Scott. Há transcrição mais antiga de Péricles Eugênio da Silva Ramos - suspeito que o poeta meramente assinou o trabalho sem realizá-lo. Trocando em miúdos, péssimo.
A tradução que segue foi baseada no texto norte-americano (particular em algumas minúcias do britânico), a partir da referida edição crítica da Norton.
Pois escureçam o firmamento - subam as velas - e que agora sopre Ahab;

* * * * *

C. XXXVII
PÔR-DO-SOL

(A cabine; próximo à janela; sentado sozinho, Ahab fita o horizonte)

Torno a vigília pálida e opaca; onde iço a vela, os rostos e as ondas esmaecem. Invejosas, as nuvens tramam encadear meu caminho; deixa-as; primeiro, eu passo.
Longínquas, do cálice à toda-transbordante orla, cálidas as ondas coram como vinho. Áureo franzir afunda o anil. O sol mergulha - lânguido mergulho do poente; e minha alma ascende! esmera-se a subir seu monte sempiterno. É pesada em demasia, a coroa que sustento? esta Coroa de Ferro da Lombardia. Resplandece porém com inúmeras jóias; eu, o portento, não vejo seu fulgir; mas, taciturno, sinto que a porto, porto o que desfere espantoso deslumbre. Ferro - disto sei - não de ouro. Fendida, ainda – sinto-a; apunhalam-me as quinas pontiagudas, meu cérebro parece pulsar contra o metal maciço; arre, crânio de aço, o meu; do tipo que dispensa capacetes na mais periclitante disputa intelectual!
Seca o suor em minha testa? Ah! foi-se o tempo quando a aurora em sua nobreza me incitava, seguiu-se o crepúsculo anuviado. Não mais. A bela luz me não alumbra; toda beleza me é angústia, porquanto não a posso apreciar. Dotado da percepção superior, falta-me a humilde faculdade do prazer; condenado, em malevolia e sutileza! condenado no meio do Paraíso! Boa noite - boa noite! (acenando com a mão, afasta-se da janela.)
Tal não foi tão árdua missiva. Pensara que encontraria um, ao menos, a resistir; entretanto, minha roda dentada encaixa em todas suas várias polias, e assim estas funcionam. Ou, se lhe aprouver, como inúmeros montes de pólvora, a mim se defrontam; e eu seu fósforo. Ah, dureza! Que, para acender os outros, deve o fósforo riscar-se! O que ousei, eu quis, e o que eu quis, farei! Dizem-me louco - Starbuck o diz; mas sou demoníaco, sou a loucura enlouquecida! A loucura que só é plácida quando a si contempla! Afirmava a profecia que eu deveria ser desmembrado, e - arre! Perdi esta perna. Agora profetizo que desmembrarei meu desmembrador. Agora, enfim, sejam um profeta e cumpridor. Mais que vocês, deuses, jamais foram. Têm-me o riso e a zombaria, vocês, jogadores de críquete, pugilistas, Burkes surdos e Bendigos cegos! Não agirei como o garotinho aos valentões na escola, que diz - Vá procurar alguém do teu tamanho; não bata em mim! Não, vocês me derrubaram, e eu me levantei; porém vocês fugiram e se esconderam. Saiam aí de trás dos sacos de algodão! Minha arma não é longa o suficiente para lhes alcançar. Venham, Ahab lhes manda votos; venham e vejam se conseguem me entortar! Me entortar? Não conseguem me entortar, pois assim entortariam a si mesmos! o homem aí lhes cerca. Me entortar? A rota a meu objetivo é firme, assentada em trilhos de ferro; nela minha alma corre qual locomotiva. Sobre quedos desfiladeiros, através dos corações escarpados das serras, sob o leito das torrentes, infalível eu corro! Nada é obstáculo, nada é desvio à trilha férrea!

*

C. XXXVIII
CREPÚSCULO

(Próximo ao mastro principal; nele encosta-se Starbuck)

Mais que um confronto, minha alma foi subjulgada; e por um louco! Agrilhoada maldita, essa que a sanidade leva ao quedar braços neste campo! Mas ele perfurou até o fundo, e dinamitou-me toda minha razão! Enxergo, acho, seu objetivo ímpio; mas sou impelido a lhe ajudar a realizá-lo. Irei, não irei, a coisa inexorável me atracou a ele; me arrasta com uma corda que não posso cortar, pois não tenho a faca. Velhote horrendo! Quem lhe comanda, grita ele; - arre, seria um democrata a todos lá em cima; e vê como ele tiraniza a todos cá embaixo! Ah! Enxergo plenamente meu ofício miserável, - obedecer, em rebeldia; e, ainda pior, odiar com uma pitada de compaixão! Pois em seus olhos percebo certas chagas macilentas que me paralisariam, se eu as tivesse. Longas fluem as ondas e as horas. A odiosa baleia tem toda a água do mundo para nadar, qual peixinho dourado tem seu aquário. Seu desígnio blasfemo, Deus talhará. Avivaria meu coração, não estivesse este chumbado. Entretanto meu relógio inteiro pifou; meu coração, o peso não mais o equilibra, não posso mais lhe dar corda.

(Uma barulheira do castelo de proa.)
Deus! Ah, Deus! navegar com uma tripulação bárbara que pouco conheceu o carinho de mães humanas! Amamentados algures pelo mar dos tubarões. A baleia branca é seu demogorgon. Vê! as orgias infernais! aquela barulheira a bombordo! o silêncio arrefecido segue a estibordo! Eis a vida retratada. Firme dentre as vívidas vagas a proa jovial, alerta, ligeira voa, mas tão-somente para arrastar consigo o sombrio Ahab, no que ele trama em sua cabine, erigida sobre a água morta da madrugada e, mais, caçada por seu borbulhar canino. O longo uivo me arpoa! Paz! foliões, e acertem a hora. Ah, vida! numa hora como essa em que a alma estuporada e presa ao conhecimento, - como a alimentação forçada das coisas selvagens e incultas - Ah, vida! é agora que consigo sentir o terror em ti latente! mas não em mim! este terror está fora de mim! e com o fraco pulsar do que me é humano, ainda assim tentarei lutar convosco, futuros fantasmagóricos e horríveis! Acompanhem-me, sustentem-me, prendam-me, Ó vós, forças benditas!

*

C. IXL
PRIMEIRA VIGIA NOTURNA

SOBRE-QUILHA.

(Stubb solus, e remendando uma escora.)

Ha! Ha! Ha! Ha! Hem! limpa minha glote! - Matutara desde então, e, bem, ha-ha é a conclusão. E como? Pois o riso é a resposta mais sábia, mais fácil a tudo que existe de estranho; e venha o que vier, sempre sobra o conforto – aquele inefável conforto, já predestinado. Não escutei todo seu papo com Starbuck; mas, a meu ímpio olho, Starbuck parecia se sentir como eu naquela outra tarde. Certeza que o velho Mogul também o lascou. Considerei, também sabia; se eu tivesse o dom, teria profetizado na hora – pois quando meti os olhos em sua cachola, eu vi. Bem, Stubb, bom garoto, Stubb – meu termo – bem, Stubb, e aí, Stubb? Eis uma carcaça. Não sei de tudo que virá, mas, seja lá o que for, vou pra lá rindo. Que engraçado esse esgueiro de soslaio em seus horríveis! Tô me sentindo esquisito. La, ra! Urra, irra! Que meu docinho de coco tá fazendo em casa agora? Os olhos inchadinhos de chorar? – Tá fazendo festa pros arpoadores recém-chegados, isso sim, lépida como o galhardete da fragata, como eu – la, ra! Urra, irra! A-

A noite entornamos e a alma avivamos,
Às paixões que, lépidas, vão
Qual bolha devassa, à orla da taça,
Estoura nos lábios então.

Uma vara viril que – quem tá chamando? Sr. Starbuck? Arre, arre, senhor – (Virando-se) meu superior, ele, também tem o seu, ele, se não me engano. – Arre, arre, senhor, quase acabando aqui – indo.

*

C. XL
MEIA-NOITE, CASTELO DE PROA

ARPOADORES E MARUJOS.

(Sobe o traquete, revelando a vigia parada, inclinada, apoiada, e disposta em várias posições, todas cantando em coro.)

Até logo e adeus, mias espanholinhas!
Até logo e adeus, donzelas de Espanha!
Mandou o capitão–

1º MARUJO DE NANTUCKET.

Ah, garotos, não sejam sentimentais; é péssimo pra digestão! Tomem uma tônica, sigam-me!

(Canta, e todos o seguem.)

Convés, e o telescópio em punho
Lá estava o capitão,
À guisa das baleias nobres
Que nadam n’amplidão.
Nos barcos os tonéis, garotos,
E os remos em suas mãos,
Teremos mais baleias gordas,
Fisgadas pelo arpão!
Ânimo, jovem! Nunca esmoreça, nunca receia!
Enquanto o arpoador corajoso atravessa a baleia!

VOZ DO IMEDIATO NO TOMBADILHO SUPERIOR.

Oito badaladas, avante!

2º MARUJO DE NANTUCKET.

Basta de cantoria! Oito badaladas! tu escutas, sineiro? Badala o sino oito vezes, tu, Pip! tu, neguinho! e deixa que chamo a vigia. Tenho boca pra isso – a boca da barrica. Aí, aí, (enfia a cabeça na escotilha,) Esti-n-a-u-t-a-s, a-l-o-u! Oito badaladas aí embaixo! Levantem!

MARUJO HOLANDÊS.

Boa soneca esta noite, companheiro; tenra noite pra tal. Percebo no vinho do velho Mogul; tão letal a alguns, quão estimulante a outros! Nós cantamos; eles dormem – arre, fiquem aí deitados, imersos como pipas de vinho. Neles de novo! Toma aí essa bomba de tanoeiro, chama eles com isso. Diz pra deixarem de sonhar com suas garotas! Diz que é a ressurreição; que devem dar o último beijo e aguardar o juízo. Assim que se faz – assim; tua garganta não reclama da manteiga de Amsterdã.

MARUJO FRANCÊS.

Psiu, gaminhos! Vamos mais uma rodada ou duas antes que ancoremos na Baía da Coberta. Que me falam? Aí vem o outro vigia. De pé a todo custo! Pip! pequeno Pip! hurra com seu tamborim!

PIP.
(Amuado e sonolento.)

Sei não onde é.

MARUJO FRANCÊS.

Bate na tua pança, então, e abana tuas orelhas, mais uma rodada, homens, eu digo; divertir-se é a ordem, hurra! Orra, você não vai dançar? Juntos, agora, em fila indiana, e galopem com os sapatos? Soltem-se! Pernas! pernas!

MARUJO ISLANDÊS.

Não me agrada teu piso, companheiro; muito flexível pro meu gosto. Estou acostumado com pisos de gelo. Desculpe por jogar um balde de água fria na questão; com sua licença.

MARUJO MALTÊS.

Eu idem; cadê suas garotas? Quem senão um idiota trocaria a mão certa pela errada e diria a si mesmo, como cê tá? Parceiros! Preciso de parceiros!

MARUJO SICILIANO.

Raparigas e um verde – então até eu salto convosco; issa, pula gafanhoto!

MARUJO DE LONG-ISLAND.

Bom, bom, seus carrancudos, há muitos mais de nós aqui. Sachem a espiga se quiserem, digo eu. As pernas logo irão pra colheita. Ah! Aí vem a música; pra ela agora!

MARUJO DOS AÇORES.
(Subindo, e arremessando o tamborim na escotilha.)

Tá aí, Pip; e tá aí as baquetas do molinete; aí vão! Agora, garotos!

(Metade deles dança ao som do tamborim; alguns descem; alguns dormem ou deitam entre as duchas dos cordames. Juras a mil.)

MARUJO DOS AÇORES
(Dançando.)

Vai nessa, Pip! No murro, sineiro! Não para, não para, não para não! Faísca o vagalume; quebra o batuque!

PIP.

Batuque, cê diz? – aí vai outro, pendido; cai no pancadão.

MARUJO CHINÊS.

Portanto range teus dentes e dá a pancada: sê como o pagode.

MARUJO FRANCÊS.

Maluco-beleza! Segura o aro, Pip, até que eu o atravesse! Solta as velas! arrebentem!

TASHTEGO.
(Fumando silente.)

Eis um homem branco; ele chama aquilo de diversão; hunf! Poupo meu suor.

MARUJO VELHACO.

Questiono se tais joviais mancebos têm noção de sobre o que dançam. Dançarei sobre vossa tumba, eu vou – eis a pior injúria de vossas damas noturnais, as quais contra o vendaval zunem pelos cantos. Ó Cristo! imaginar as verdejantes naus, e as tripulações de crânio pantanosos! Bem, bem; seja o mundo qual bola unívoca, conforme sustentam vossos doutos; justo que dele façam baile. Dançai mancebos, sois jovens; outrora o fui.

3º MARUJO DE NANTUCKET

Entoa o! – ufa! isso é pior que puxar baleias em águas calmas – dá uma pitada, Tash.

(Param de dançar, e se agrupam; no ínterim, o céu escurece – o vento sobe.)

MARUJO DE LASCAR.

Por Brahma! rapazes, em breve faz-se içar a vela. Curvado ao vento, o Ganges do levante e da maré! Tu mostras tua fronte sombria, Seeva!

MARUJO MALTÊS.
(Inclinando-se e apertando o boné.)

São as ondas – cantam-nas agora as calotas de neve. Logo agitarão barretes seus. Fossem as ondas todas mulheres, nelas me afogaria, bailando pra sempre! Nada há de mais encantador na terra – nem mesmo o Paraíso! – que o requebrar das brônzeas cinturas, selvagens em relance, enquanto os braços arbóreos escondem as uvas redondas e durinhas!

MARUJO SICILIANO.
(Inclinando-se.)

Nem me fale! Escuta, bambino – lépido entrelace dos membros – ágil e fluídos–oscilantes–sinuosos! boca! cora! anca! roçam em conjunto; se tocam, remexem! sem provar, te nota, senão satisfaz. Eh, Infiel? (Cutucando.)

MARUJO DO TAITI.
(Escorando-se numa esteira.)

Bendita seja a nudez sagrada de nossas dançarinas! – o Heeva-Heeva! Ah! o Taiti, em seus vales profundos e palmeiras altas! Ainda descanso em tua esteira, mas o solo deslizou molhado! Eu te vi trançada entre troncos, esteira minha! verdejante era no dia em que te trouxe; hoje pálida e descorada. Ó vida! – nem tu nem eu suportamos o tempo! Como, se removida àquele céu? Escuto eu os gemidos das torrentes no pico íngreme de Pirohitee, quando dos penhascos saltam e os vilarejos inundam? – A rajada! A rajada! Ereta, coluna, enfrenta-a! (Põe-se de pé.)

MARUJO PORTUGUÊS.

Quais vagas a esparrinhar saltitantes contra a banda! A rizar, tesos corações! a borrasca está somente a brandir espadas, acá a entrever borrifas.

MARUJO DINAMARQUÊS.

Craca, craca, escuna gasta! enquanto tu cracas, seguras! Desse modo! Firme segura-te o marujo. Não mais medroso é ele que a fortaleza insular em Cattegat, lá situada para barrar os Bálticos com tempestuosos canhões, sobre os quais enferrujam as saleiras!

4º MARUJO DE NANTUCKET.

Ele tem ordens a seguir, note bem. Escutei o velho Ahab lhe dizer que se deve golpear a onda sempre, algo como atirar num jato d’água com uma pistola – dispara teu navio no coração da tempestade!

MARUJO INGLÊS.

Raios! mas aquele velhote é um sujeito temeroso! Nós, os garotos, somos quem o levaremos até a baleia!

TODOS.

Arre! Arre!

MARUJO VELHACO.

Como balouçam os três pinhos! Os pinhos são a espécie arbórea mais debilitada quando alocadas a outro solo, e cá nada mais existe senão o maldito barro dessa marujada. Rijo, timoneiro! rijo. Neste tipo de clima os corações vacilam em terra firme; e as quilhas arrebentam cá no mar. Nosso capitão tem seu cravo de nascença; olhai algures, mancebos, há outra no páramo – lúgubre, percebei, qual resto negrume absoluto.

DAGGOO.

E daí? Quem teme o negro, teme a mim! Cansei de firulas!

MARUJO ESPANHOL.

(Ao lado.) Pensa que intimida, ah! – o velho rancor me sensibiliza. (Avançando.) Arre, arpoador, tua raça é o lado negro inegável da humanidade – negro diabólico, digo eu. Sem ofensas.

DAGGOO.
(Soturno.)

Nenhuma.

MARUJO DE SÃO TIAGO.

Aquele espanhol tá louco ou borracho. Mas não pode ser isso; ou em seu caso o fogo marinho do velho Mogul funcionou que é uma beleza.

5º MARUJO DE NANTUCKET.

Que é isso–relâmpago? É.

MARUJO ESPANHOL.

Não; Daggoo mostrando os dentes.

DAGGOO.
(Saltando.)

Engole os teus, nanico! Pele branca, fígado branco!

MARUJO ESPANHOL.

Te furo do coração! tamanho enorme, brio minúsculo!

TODOS.

Porrada! porrada! porrada!

TASHTEGO.
(Baforando.)

Porrada cá em baixo, porrada lá em cima – Deuses e homens – ambos encrenqueiros! Hunf!

MARUJO DE BELFAST.

Porrada! Aha porrada! Bendita a Virgem, porrada! Salto aí no meio!

MARUJO INGLÊS.

Jogo limpo! Tirem a faca do espanhol! Um ringue, um ringue!

MARUJO VELHACO.

Alinhados. Lá! o ringue horizontal. Nele Cain golpeou Abel. Obra doce, obra justa! Não? Por que, Deus, fizeste então o ringue?

VOZ DO IMEDIATO DO TOMBADILHO SUPERIOR.

Segurem nas adriças! nas velas do mastaréu! Escorem no filão da gávea!

TODOS.

A onda! a onda! pulem, meus queridos! (Espalham-se.)

PIP.
(Tremendo sob o molinete.)

Queridos? Que o Senhor queira eles bem! Crash, crish! aí vai a bujarrona! Bum, bam! Jesus! Abaixa, Pip, aí vem a armada real! É pior que ficar perdido no mato, no último dia do ano! Quem vai procurar castanha agora? Mas aí vão eles, reclamando, e cá eu não. Boa sorte pra eles; tão no caminho do céu. Segura firme! Meu São Crispim, que onda! Mas aqueles caboclos lá são piores ainda – as ondas brancas, são. Ondas brancas? baleia branca, oxi! oxi! Escutei tudo que falou aqui, e a baleia branca – oxi! oxi! – mencionada uma vez só! e nessa noite só – faz eu batucar todinho como meu tamborim – aquela jibóia do velhote mandou todo mundo caçar ela! Ai, seu Deus brancão nalgum canto do escuro aí em cima, tem piedade desse negrinho cá embaixo; livrai ele de todos homens sem tripas pra sentir medo!


* * * * *

Moby-Dick foi originalmente publicado em 1851. Ismael - Melville - descansa em Woodlawn Cemetery, no Bronx.
Num jato d'água volto para traduzir mais do livro - este que William Faulkner, justo, afirmara querer ter escrito. 'I wish I had written that'.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Todesfuge

Prometi há muito uma tradução de Mortefuga, do poeta romeno Paul Celan (1920-1970). Antes, pequena nota biográfica sobre o poeta.
Nome proeminente da poesia no pós-Guerra, Celan possuía o raro espírito febril qual Baudelaire: a habilidade de encontrar o belo no feio (ou "expressar o feio de maneira bela", na formulação decadente), de refletir sobre o demente, de jogar alguma luz na massa umbrosa das indústrias - no caso, da nódua cinzenta ascendente dos corpos carbonizados nos campos de concentração. Traduziu Kafka, Frost, Ungaretti, Nerval, Mandelstam, Dickinson. Seu poema mais famoso, Todesfuge, foi publicado em 1948, circulado desde 1944. Tentativa de ritmar o horror do Holocausto, versos calcados no Sein-zum-Tod heideggeriano, deveras influenciados por Trakl (Alemanha anoitece...), e os quais estarreceram até Adorno, este que havia então declarado a "morte da poesia". Poema de difícil tradução devido à carga rítmica (polifônica, vozes contrapostas no que variam um mesmo tema como a fuga musical) e conceitual (saltam imagens bíblicas e da tradição medieval-cristã), Mortefuga sintetiza o paideuma da Alemanha destruída após a derrota hitlerista. Fala por si só. A quem, todavia, aprouver maiores informações, procurem o texto de Theo Buck na edição comentada de Todesfuge.
Algumas liberdades na tradução - ex., 'te temos' ao invés de um 'bebemos' para traduzir 'trinken'; a supressão dos pronomes explícitos no que desloquei o sujeito para o interior dos verbos; e 'solfejar' para abarcar a gama de significados de 'spielen' (tocar, brincar, etc.) - se auto-justificarão, espero.
O poeta descansa no Cemitério de Thiais, na grande Paris.


Paul Celan aos 18 anos, em seu passaporte (1938)

TODESFUGE

Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken
wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete
er schreibt es und tritt vor das Haus und es blitzen die Sterne er pfeift seine Rüden herbei
er pfeift seine Juden hervor läßt schaufeln ein Grab in der Erde
er befiehlt uns spielt auf nun zum Tanz

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich morgens und mittags wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete
Dein aschenes Haar Sulamith wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng

Er ruft stecht tiefer ins Erdreich ihr einen ihr andern singet und spielt
er greift nach dem Eisen im Gurt er schwingts seine Augen sind blau
stecht tiefer die Spaten ihr einen ihr andern spielt weiter zum Tanz auf

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags und morgens wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith er spielt mit den Schlangen
Er ruft spielt süßer den Tod der Tod ist ein Meister aus Deutschland
er ruft streicht dunkler die Geigen dann steigt ihr als Rauch in die Luft
dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt man nicht eng

Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags der Tod ist ein Meister aus Deutschland
wir trinken dich abends und morgens wir trinken und trinken
der Tod ist ein Meister aus Deutschland sein Auge ist blau
er trifft dich mit bleierner Kugel er trifft dich genau
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
er hetzt seine Rüden auf uns er schenkt uns ein Grab in der Luft
er spielt mit den Schlangen und träumet der Tod ist ein Meister aus Deutschland

dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith

*

MORTEFUGA

O preto lácteo matino lhe temos à tarde
lhe temos à ceia à aurora lhe temos à noite
lhe temos e temos
cavamos uma cova no vento não será apertado
um homem habita na casa solfeja serpentes e escreve
escreve e a Alemanha anoitece em ouro seus cachos Margarete
escreve e afora cintilam estrelas e atina os cães afurnados
atina em filas Judeus quais cavam uma cova na terra
comanda as furnas solfejam em dança.

O preto lácteo matino te temos à noite
te temos à aurora à ceia te temos à tarde
te temos e temos
um homem habita na casa solfeja serpentes e escreve
escreve e a Alemanha anoitece em ouro seus cachos Margarete
em cinza seus cachos Sulamita cavamos uma cova no vento não será apertado

voceja cavai fundo na terra e acá e além cantai e dançai
levita o ferro em sua cinta e o veleja seus olhos azuis
cavai-vos fundo a espátula e acá e além o baile dançai

O preto lácteo matino te temos à noite
te temos à ceia à aurora te temos à tarde
te temos e temos
um homem habita na casa em ouro seus cachos Margarete
em cinza seus cachos Sulamita solfeja serpentes
voceja e cantem terna é a morte na Alemanha a mestra é a morte
voceja e eivam negras as cordas qual fumo ascendereis ao ar
terás uma cova nas nuvens não será apertado

O preto lácteo matino te temos à noite
te temos à ceia na Alemanha a mestra é a morte
te temos à tarde à aurora te temos e temos
na Alemanha a mestra é a morte seus olhos azuis
mira em ti balas de chumbo sua mira conduz
um homem habita na casa em ouro seus cachos Margarete
atira-nos cães e concede-nos uma cova no ar
solfeja serpentes e trama na Alemanha a mestra é a morte

Em ouro seus cachos Margarete
Em cinza seus cachos Sulamita

*

Há uma boa tradução de Paul Celan para o inglês, por Michael Hamburger - mesmo autor do hoje clássico The Truth of Poetry -, em Poems, ed. bilíngue (New York: Persea Books, 2002). Em alemão, a edição curada por Barbara Wiedemann, Die Gedichte: Komentierte Gesamtausgabe (Berlin: suhrkamp Verlag, 2005) é, das disponíveis no mercado atual, a mais completa.

Este texto - qual muitos que virão - versou sobre a morte.
No que findou 2010, findou a década dos '00s - decênio estúpido como boa parte dos anos iniciais de um século. Anos que nos roubaram Saul Bellow, Will Eisner, Czeslaw Milosz e Billy Wilder. O mofo da fama permanece todavia. É a velha história do Cavaleiro Verde do Sir Gawain, comentado recentemente por Contardo Calligaris na Folha de São Paulo: a velha década ainda carregará sua cabeça de barbas verde-pântano por muito, ainda no que desfiará a lâmina de seu machado nas jovens nucas dos jovens anos.

Até que o Áufido passe, e varra todas as covas, e toda fumaça.
(O blog voltará com o despertar do Euroclidião).