sábado, 8 de outubro de 2011

Memnona si mater

Eis a nona elegia do livro terceiro dos Amores de Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.), o emocionante θρῆνος dedicado a Álbio Tibulo (55 a.C. - 19 a.C.), iniciado numa tarde na biblioteca e finalizado em três madrugadas desbravadas com Lewis & Short e o vetusto Saraiva. Tentei adaptar, como o fez Castilho em alguns versos dos Fasti & tradutores mais, o dístico elegíaco - hexâmetro/pentâmetro dactílico, ou "o verso heróico" e um "hexâmetro cataléptico" (visite a βιβλιοθήκη de Fócio, codex CCXXXIX na χρηστομαθία de Proclo) em dísticos de alexandrinos/decassílabos, sejam acentuados na sexta, ou na quarta/oitava. Não obedeci à ordem dactílica, aqui o verso é flexível, maioria das vezes iâmbico: transpor sessenta-e-oito versos de Ovídio em metros regulares por ora já me é dificuldade suficiente.

scilicet hanc legem nentes fatalia Parcae / stamina bis genito bis cecinere tibi.
[sim, este ordo fatais rodopiando as Parcas / as rocas bitoaram a ti bigênito]

* * * * *

AMORES III.9
Se a mãe Mêmnon chorou, e a mãe chorou Aquiles,
e tristezas raptaram deusas magnas,
em pranto solta os cachos teus, ó Elegia!
ai, agora teu nome soará alto!
o poeta da sanha, fama tua, Tibulo
arde na pira nua, o corpo frio.
ai ai, filho de Vênus leva a aljava torta,
em cacos arco e flecha, a luz sem luz!
vai, olha, de asas baixas tomba o miserando,
lhe pesa o coração no peito nudo!
afogam lágrimas na nuca os descabelos,
e as vozes abatidas num soluço!
conta-se, belo Julo, do domo assim partiu

que as exéquias cobriu de Enéias teu
;
Vênus assim se fende de Tibulo morto,
como outrora fendeu-se a coxa adônea!
somos porém chamados de "divinos", "sacros",
e há aqueles que nos tomam como numes.
sim, todo o sacro a Morte insidiosa profana,
arrasta a todos com obscuras garras!
a que o pai, a que a mãe valeu a Orfeu Ismário?
a que valor seu canto abranda-feras?
o mesmo pai a Linos em matas alheias
na lira "ai Linos!" só contratoava;
a ele soma o Meônio, o qual, fonte perene,
os vates amamenta com os veios
da Piéria: ele o Averno negro também bebe!
os cantos logram sós fugir da pira.
de vates a obra, em ruínas afamada Tróia,
reurdida a tela, ardil noturno, vivem;
longo será de Nêmesis, de Délia o nome,
uma a dor recente, esta o prima amada.
a que vos vale o sacro? e o sistro, a que vos serve?
a que no leito esbanjam madrugadas?
a sina má (perdoai o tom!) se os bons abate,
agito-me em pensar que não há deuses!
se vives mesmo em pio, morres; te louva os numes,
dos templos Morte afunda ao reles chão!
a poesia sobrevive! e ai que jaz Tibulo!
dele resta mais nada que uma urna!
acaso a ti tomaram, vate, a ti temeram
sorver as chamas fúnebres teu peito?
pudessem dos celícolas os áureos templos
brasar, que sacrilégio tanto viram!
virou a face a deusa dos montes Erícios,
e conta-se que em lágrimas desfez-se!
tanto entre nós morreu, que nas terras Feácias
sepulto fosse, ignoto, em solo vil.
aqui cerrou a mãe do lívio os olhos úmidos
e às cinzas deu as últimas ofertas;
aqui à partilha veio a irmã da dor materna,
esfarrapar as tranças desgrenhadas,
e aos teus deitaram beijos Nêmesis e a prima
solitárias que as chamas não pereçam!
Ai, Délia, 'Eras feliz outrora, tu me amaste!
Viveste, enquanto eu era a brasa tua!'
E Nêmesis, ai, 'A ti que são as dores minhas?
a mim foi que estendeu a mão mortiça!'
se então sobrar de nós senão o nome e a sombra,
Tibulo viverá no vale Elísio!
virás a seu encontro, da hedera cingido,
jovem Catulo, o douto Calvo teu;
e tu também, se falso é o fatricídio, pródigo
Galo que tanto deste suor e sangue!
se a sombra tem feição,
tua sombra é sócia deles!
culto Tibulo, mais alto cantaste!
ossos, ai, rogo, agora cala, urna, descansa,
e seja leve a relva às cinzas tuas!


*

AMORVM LIBER III.IX

Memnona si mater, mater plorauit Aquillem,
et tangunt magnas tristia fata deas,
flebilis indignos, Elegia, solue capillos;
a, nimis ex uero nunc tibi nomen erit!
ille tui uates operis, tua fama, Tibullus
ardet in exstructo corpus inane rogo.
ecce puer Veneris fert euersamque pharetram
et fractos arcus et sine luce facem;
aspice, demissis ut eat miserabilis alis
pectoraque infesta tundat aperta manu.
excipiunt lacrimas sparsi per colla capilli,
oraque singultu concutiente sonant.
fratris in Aeneae sic illum funere dicunt
egressum tectis, pulcher Iule, tuis.
nec minus est confusa Venus moriente Tibullo
quam iuueni rupit cum ferus inguen aper.
at sacri uates et diuum cura uocamur,
sunt etiam qui nos numen habere putent.
scilicet omne sacrum Mors importuna profanat;
omnibus obscuras inicit illa manus.
quid pater Ismario, quid mater, profuit Orpheo,
carmine quid uictas obstipuisse feras?
et Linon in siluis idem pater 'aelinon' altis
dicitur inuita concinuisse lyra.
adice Maeoniden, a quo ceu fonte perenni
uatum Pieriis ora rigantur aquis;
hunc quoque summa dies nigro summersit Auerno.
defugiunt auidos carmina sola rogos.
durat opus uatum, Troiani fama laboris
tardaque nocturno tela retexta dolo:
sic Nemesis longum, sic Delia nomen habebunt,
altera cura recens, altera primus amor.
quid uos sacra iuuant? quid nunca Aegyptia prosunt
sistra? quid in uacuo secubuisse toro?
cum rapiunt mala fata bonos, (ignoscite fasso)
sollicitor nullos esse putare deos.
uiue pius: moriere; pius cole sacra: colentem
Mors grauis a templis in caua busta trahet.
carminibus confide bonis: iacet ecce Tibullus;
uix manet e tanto, parua quod urna capit.
tene, sacer uates, flammae rapuere rogales,
pectoribus pasci nec timuere tuis?
aurea sanctorum potuissent templa deorum
urere, quae tantum sustinere nefas.
auertiti uultus, Erycis quae possidet arces;
sunt quoque qui lacrimas continuisse negant.
sed tamen hoc melius, quam si Phaeacia tellus
ignotum uili supposuisset humo.
hic certe madidos fugientis pressit ocellos
mater et in cineres ultima dona tulit;
hic soror in partem misera cum matre doloris
uenit inornatas dilaniata comas,
cumque tuis sua iunxerunt Nemesisque priorque
oscula nec solos destituere rogos.
Delia discedens 'felicius' inquit 'amata
sum tibi: uixisti, dum tuus ignis eram.'
cui Nemesis 'quid' ait 'tibi sunt mea damna dolori?
me tenuit moriens deficiente manu.'
si tamen e nobis aliquid nisi nomen et umbra
restat, in Elysia ualle Tibullus erit.
obuius huic uenies hedera iuuenalia cinctus
tempora cum Caluo, docte Catulle, tuo;
tu quoque, si falsum est temerati crimen amici,
sanguinis atque animae prodige Galle tuae.
his comes umbra tua est, si qua est modo corporis umbra;
auxisti numeros, culte Tibulle, pios.
ossa quieta, precor, tuta requiescite in urna,
et sit humus cineri non onerosa tuo.

* * * * *

"Espelho da decadência romana", Públio Ovídio Nasão nasceu em 43 a.C. em Sulmona, na Itália central. Foi o último dos grandes poetas do período augustano, dentre eles o mais jovem. De verso fluído e fácil e ligeiro, diversos creram frívolo e flébil, lascivo no juízo de Quintiliano¹, artífice do verso, estendeu a mão a vários metros e gêneros: autorou epopéia (as Metamorfoses), elegias (Amores), epístolas (as Heróides, as Tristia, as Do Ponto), tragédia (uma Medéia, hoje perdida); escreveu poesia amorosa, épica, didática, de teor político. Foi poeta muito lido no medievo a despeito de sua (im)piedade pagã; Dante, Petrarca e Chaucer são repositários do italiano, tal qual tardiamente Shakespeare, Goethe, Stefan George, E. Pound. Morreu no exílio, figura à margem, em 17.
Esta tradução baseia-se no texto publicado em P. Ovidi Nasonis Amorum Libri da Oxoniensis, (ed. E. J. Kenney, 1995). A imagem é afresco de Herculano; o dístico fatídico é da epístola terceira do quinto livro das Tristia, vv.25-26.
Vez outra, recomendamos as eds. da Belles Lettres (trad. Henri Bornecque, 1930) e da Loeb Classical Library (trad. Grant Showerman, 1914 e revisada por G. P. Goold). Peter Green, tradutor de Catulo, versou Ovídio em inglês nos The Erotic Poems da Penguin.
Os Amores foram recentemente reunidos à Arte de Amar na coleção Companhia das Letras-Penguin, no luso de Carlos Ascenso André, anteriormente publicadas em dois tomos pela Cotovia. Nela há notas do tradutor e útil introdução acerca da vida de Ovídio, por Peter Green, a mesma da ed. inglesa; o português não trai o conteúdo, mesmo se bastante prosaico.
O primeiro livro dos Amores recebeu cuidadosa recriação de Lucy Ana de Bem, via hedra. Resta esperarmos os dois restantes, se vindo.
Mais antigo, Antônio Feliciano de Castilho traduziu os Amores, em conjunto com A Arte de Amar e os Fastos. Estes últimos, ímpares na tradução oitocentista de clássicos, merecem reedição criteriosa qual Odorico Mendes. Consultei suas soluções para a elegia III.9, transpostas em quintilhas de decassílabos rimados. Não funciona. Esvai-se a pungência do embate característico do verso elegíaco - notem, no poema, a incoerência entre a poesia, supostamente imortal, e o corpo de Tibulo morto: o poeta nega-se a estabelecer uma conclusão; Castilho também transforma-o num mero artífice do verso, um jogral, um jongleur. Ovídio foi sim virtuoso, erudito parelho de Propércio e Horácio, formalmente o mais audacioso do latim clássico. No entanto e além, no que a força de Virgílio vem do Estado e da História; e a de Horácio do ofício apícola, também da natureza bruta & pindárica; a de Ovídio, das emoções humanas. Em Roma foi ele o grande poeta do patético.

[1] Elegia quoque Graecos provocamus, cuius mihi tersus atque elegans maxime videtur auctor Tibullus. sunt qui Propertium malint. Ovidius utroque lascivior, sicut durior Gallus. (Institutio Oratoria, X.I.93)
[Também rivalizamos os gregos na elegia, donde nosso autor mais polido e elegante, parece-me, é Tibulo. Há aqueles que preferem Propércio. Ovídio é mais lascivo que ambos, ao passo que Galo é mais rude.]