sábado, 8 de outubro de 2011

Memnona si mater

Eis a nona elegia do livro terceiro dos Amores de Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.), o emocionante θρῆνος dedicado a Álbio Tibulo (55 a.C. - 19 a.C.), iniciado numa tarde na biblioteca e finalizado em três madrugadas desbravadas com Lewis & Short e o vetusto Saraiva. Tentei adaptar, como o fez Castilho em alguns versos dos Fasti & tradutores mais, o dístico elegíaco - hexâmetro/pentâmetro dactílico, ou "o verso heróico" e um "hexâmetro cataléptico" (visite a βιβλιοθήκη de Fócio, codex CCXXXIX na χρηστομαθία de Proclo) em dísticos de alexandrinos/decassílabos, sejam acentuados na sexta, ou na quarta/oitava. Não obedeci à ordem dactílica, aqui o verso é flexível, maioria das vezes iâmbico: transpor sessenta-e-oito versos de Ovídio em metros regulares por ora já me é dificuldade suficiente.

scilicet hanc legem nentes fatalia Parcae / stamina bis genito bis cecinere tibi.
[sim, este ordo fatais rodopiando as Parcas / as rocas bitoaram a ti bigênito]

* * * * *

AMORES III.9
Se a mãe Mêmnon chorou, e a mãe chorou Aquiles,
e tristezas raptaram deusas magnas,
em pranto solta os cachos teus, ó Elegia!
ai, agora teu nome soará alto!
o poeta da sanha, fama tua, Tibulo
arde na pira nua, o corpo frio.
ai ai, filho de Vênus leva a aljava torta,
em cacos arco e flecha, a luz sem luz!
vai, olha, de asas baixas tomba o miserando,
lhe pesa o coração no peito nudo!
afogam lágrimas na nuca os descabelos,
e as vozes abatidas num soluço!
conta-se, belo Julo, do domo assim partiu

que as exéquias cobriu de Enéias teu
;
Vênus assim se fende de Tibulo morto,
como outrora fendeu-se a coxa adônea!
somos porém chamados de "divinos", "sacros",
e há aqueles que nos tomam como numes.
sim, todo o sacro a Morte insidiosa profana,
arrasta a todos com obscuras garras!
a que o pai, a que a mãe valeu a Orfeu Ismário?
a que valor seu canto abranda-feras?
o mesmo pai a Linos em matas alheias
na lira "ai Linos!" só contratoava;
a ele soma o Meônio, o qual, fonte perene,
os vates amamenta com os veios
da Piéria: ele o Averno negro também bebe!
os cantos logram sós fugir da pira.
de vates a obra, em ruínas afamada Tróia,
reurdida a tela, ardil noturno, vivem;
longo será de Nêmesis, de Délia o nome,
uma a dor recente, esta o prima amada.
a que vos vale o sacro? e o sistro, a que vos serve?
a que no leito esbanjam madrugadas?
a sina má (perdoai o tom!) se os bons abate,
agito-me em pensar que não há deuses!
se vives mesmo em pio, morres; te louva os numes,
dos templos Morte afunda ao reles chão!
a poesia sobrevive! e ai que jaz Tibulo!
dele resta mais nada que uma urna!
acaso a ti tomaram, vate, a ti temeram
sorver as chamas fúnebres teu peito?
pudessem dos celícolas os áureos templos
brasar, que sacrilégio tanto viram!
virou a face a deusa dos montes Erícios,
e conta-se que em lágrimas desfez-se!
tanto entre nós morreu, que nas terras Feácias
sepulto fosse, ignoto, em solo vil.
aqui cerrou a mãe do lívio os olhos úmidos
e às cinzas deu as últimas ofertas;
aqui à partilha veio a irmã da dor materna,
esfarrapar as tranças desgrenhadas,
e aos teus deitaram beijos Nêmesis e a prima
solitárias que as chamas não pereçam!
Ai, Délia, 'Eras feliz outrora, tu me amaste!
Viveste, enquanto eu era a brasa tua!'
E Nêmesis, ai, 'A ti que são as dores minhas?
a mim foi que estendeu a mão mortiça!'
se então sobrar de nós senão o nome e a sombra,
Tibulo viverá no vale Elísio!
virás a seu encontro, da hedera cingido,
jovem Catulo, o douto Calvo teu;
e tu também, se falso é o fatricídio, pródigo
Galo que tanto deste suor e sangue!
se a sombra tem feição,
tua sombra é sócia deles!
culto Tibulo, mais alto cantaste!
ossos, ai, rogo, agora cala, urna, descansa,
e seja leve a relva às cinzas tuas!


*

AMORVM LIBER III.IX

Memnona si mater, mater plorauit Aquillem,
et tangunt magnas tristia fata deas,
flebilis indignos, Elegia, solue capillos;
a, nimis ex uero nunc tibi nomen erit!
ille tui uates operis, tua fama, Tibullus
ardet in exstructo corpus inane rogo.
ecce puer Veneris fert euersamque pharetram
et fractos arcus et sine luce facem;
aspice, demissis ut eat miserabilis alis
pectoraque infesta tundat aperta manu.
excipiunt lacrimas sparsi per colla capilli,
oraque singultu concutiente sonant.
fratris in Aeneae sic illum funere dicunt
egressum tectis, pulcher Iule, tuis.
nec minus est confusa Venus moriente Tibullo
quam iuueni rupit cum ferus inguen aper.
at sacri uates et diuum cura uocamur,
sunt etiam qui nos numen habere putent.
scilicet omne sacrum Mors importuna profanat;
omnibus obscuras inicit illa manus.
quid pater Ismario, quid mater, profuit Orpheo,
carmine quid uictas obstipuisse feras?
et Linon in siluis idem pater 'aelinon' altis
dicitur inuita concinuisse lyra.
adice Maeoniden, a quo ceu fonte perenni
uatum Pieriis ora rigantur aquis;
hunc quoque summa dies nigro summersit Auerno.
defugiunt auidos carmina sola rogos.
durat opus uatum, Troiani fama laboris
tardaque nocturno tela retexta dolo:
sic Nemesis longum, sic Delia nomen habebunt,
altera cura recens, altera primus amor.
quid uos sacra iuuant? quid nunca Aegyptia prosunt
sistra? quid in uacuo secubuisse toro?
cum rapiunt mala fata bonos, (ignoscite fasso)
sollicitor nullos esse putare deos.
uiue pius: moriere; pius cole sacra: colentem
Mors grauis a templis in caua busta trahet.
carminibus confide bonis: iacet ecce Tibullus;
uix manet e tanto, parua quod urna capit.
tene, sacer uates, flammae rapuere rogales,
pectoribus pasci nec timuere tuis?
aurea sanctorum potuissent templa deorum
urere, quae tantum sustinere nefas.
auertiti uultus, Erycis quae possidet arces;
sunt quoque qui lacrimas continuisse negant.
sed tamen hoc melius, quam si Phaeacia tellus
ignotum uili supposuisset humo.
hic certe madidos fugientis pressit ocellos
mater et in cineres ultima dona tulit;
hic soror in partem misera cum matre doloris
uenit inornatas dilaniata comas,
cumque tuis sua iunxerunt Nemesisque priorque
oscula nec solos destituere rogos.
Delia discedens 'felicius' inquit 'amata
sum tibi: uixisti, dum tuus ignis eram.'
cui Nemesis 'quid' ait 'tibi sunt mea damna dolori?
me tenuit moriens deficiente manu.'
si tamen e nobis aliquid nisi nomen et umbra
restat, in Elysia ualle Tibullus erit.
obuius huic uenies hedera iuuenalia cinctus
tempora cum Caluo, docte Catulle, tuo;
tu quoque, si falsum est temerati crimen amici,
sanguinis atque animae prodige Galle tuae.
his comes umbra tua est, si qua est modo corporis umbra;
auxisti numeros, culte Tibulle, pios.
ossa quieta, precor, tuta requiescite in urna,
et sit humus cineri non onerosa tuo.

* * * * *

"Espelho da decadência romana", Públio Ovídio Nasão nasceu em 43 a.C. em Sulmona, na Itália central. Foi o último dos grandes poetas do período augustano, dentre eles o mais jovem. De verso fluído e fácil e ligeiro, diversos creram frívolo e flébil, lascivo no juízo de Quintiliano¹, artífice do verso, estendeu a mão a vários metros e gêneros: autorou epopéia (as Metamorfoses), elegias (Amores), epístolas (as Heróides, as Tristia, as Do Ponto), tragédia (uma Medéia, hoje perdida); escreveu poesia amorosa, épica, didática, de teor político. Foi poeta muito lido no medievo a despeito de sua (im)piedade pagã; Dante, Petrarca e Chaucer são repositários do italiano, tal qual tardiamente Shakespeare, Goethe, Stefan George, E. Pound. Morreu no exílio, figura à margem, em 17.
Esta tradução baseia-se no texto publicado em P. Ovidi Nasonis Amorum Libri da Oxoniensis, (ed. E. J. Kenney, 1995). A imagem é afresco de Herculano; o dístico fatídico é da epístola terceira do quinto livro das Tristia, vv.25-26.
Vez outra, recomendamos as eds. da Belles Lettres (trad. Henri Bornecque, 1930) e da Loeb Classical Library (trad. Grant Showerman, 1914 e revisada por G. P. Goold). Peter Green, tradutor de Catulo, versou Ovídio em inglês nos The Erotic Poems da Penguin.
Os Amores foram recentemente reunidos à Arte de Amar na coleção Companhia das Letras-Penguin, no luso de Carlos Ascenso André, anteriormente publicadas em dois tomos pela Cotovia. Nela há notas do tradutor e útil introdução acerca da vida de Ovídio, por Peter Green, a mesma da ed. inglesa; o português não trai o conteúdo, mesmo se bastante prosaico.
O primeiro livro dos Amores recebeu cuidadosa recriação de Lucy Ana de Bem, via hedra. Resta esperarmos os dois restantes, se vindo.
Mais antigo, Antônio Feliciano de Castilho traduziu os Amores, em conjunto com A Arte de Amar e os Fastos. Estes últimos, ímpares na tradução oitocentista de clássicos, merecem reedição criteriosa qual Odorico Mendes. Consultei suas soluções para a elegia III.9, transpostas em quintilhas de decassílabos rimados. Não funciona. Esvai-se a pungência do embate característico do verso elegíaco - notem, no poema, a incoerência entre a poesia, supostamente imortal, e o corpo de Tibulo morto: o poeta nega-se a estabelecer uma conclusão; Castilho também transforma-o num mero artífice do verso, um jogral, um jongleur. Ovídio foi sim virtuoso, erudito parelho de Propércio e Horácio, formalmente o mais audacioso do latim clássico. No entanto e além, no que a força de Virgílio vem do Estado e da História; e a de Horácio do ofício apícola, também da natureza bruta & pindárica; a de Ovídio, das emoções humanas. Em Roma foi ele o grande poeta do patético.

[1] Elegia quoque Graecos provocamus, cuius mihi tersus atque elegans maxime videtur auctor Tibullus. sunt qui Propertium malint. Ovidius utroque lascivior, sicut durior Gallus. (Institutio Oratoria, X.I.93)
[Também rivalizamos os gregos na elegia, donde nosso autor mais polido e elegante, parece-me, é Tibulo. Há aqueles que preferem Propércio. Ovídio é mais lascivo que ambos, ao passo que Galo é mais rude.]

sábado, 24 de setembro de 2011

a.d.VIII Kal. Oct.

§1.EPIGRAMA V.LVIII.

"Amanhã hei de viver", sempre amanhã, Póstumo, dizes.
me diz, esse amanhã, vai chegar quando?
vai demorar? onde está? e de onde vem?
por acaso escondido sob Partos, Armênios?
esse amanhã já conta os anos de Príamo e Nestor.
esse amanhã, me diz, sai por quanto no varejo?
viverás amanhã: viver o hoje, Póstumo, já é tarde.
sabe-o quem quer que já viveu o ontem.

*

cras te victurum, cras dicis, Postume, semper.
dic mihi, cras istud, Postume, quando venit?
quam longe est cras istud? ubi est? aut unde petendum?
numquid apud Parthos Armeniosque latet?
iam cras istud habet Priami vel Nestoris annos.
cras istud quanti, dic mihi, possit emi?
cras vives: hodie iam vivere, Postume, serum est.
ille sapit, quisquis, Postume, vixit heri.

* * * * *

§2.
O MASSACRE DOS INOCENTES.

I
[HERODES]

Porque estou confuso, porque devo saber, porque minha decisão deve se conformar à Natureza e ao Necessário, para que eu honre aqueles que fizeram de mim o que por natureza sou.
A Fortuna - já que me tornei Tetrarca, que escapei de ser assassinado, que mesmo aos sessenta tenho cabeça boa e boa digestão.
A meu pai - agradeço-lhe o amor pelas viagens e pelo estudo.
A minha mãe - por um nariz romano.
A Eva, minha mãezinha de cor - pelos hábitos do dia-a-dia.
A meu irmão, Arenário, que se casou com uma trapezist
a e morreu da bebida - assim refutando a posição dos Hedonistas.
Ao Sr. Camacho, vulgo A Carpa, que me instruiu nos elementos da geometria através dos quais pude reconhecer os erros dos poetas trágicos.
Ao Professor Farol - por suas aulas sobre
A Guerra do Peloponeso.
Ao estranho no barco à Sicília - por me recomendar Fulvo sobre a Resolução.
E a minha secretária, Srta. Bula - por sua sinceridade em admitir que meus discursos eram inaudíveis.

Não há desordem aparente. Nenhum crime - nasce o filho de um artesão, o que poderia ser mais inocente que isso? Hoje tivemos um daqueles dias perfeitos de inverno: frio, luminoso, recôndito e calado, no que latido do cão pastoril ecoa por quilômetros, e os montes íngremes e silvestres tombam aos muros da urbe, o espírito agita-se em furor, e neste fim de tarde, enquanto me apóio na janela no topo da cidadela, não há nada, ao que espalha todo o panorama de montes e planícies, a indicar que o Império esteja ameaçado por um perigo mais temível que uma invasão de Tártaros sobre velozes camelos ou um
a conspiração da Guarda Pretoriana.
Barcaças descarregam fertilizante nos cais rio adentro. Drinques e sanduíches podem ser comprados a preços módicos nas estalagens. A jardinagem está na moda. A estrada pela encosta escala até a montanha, e os charreteiros não mais carregam armas. As coisas começam a tomar jeito. Faz um tempo desde que alguém roubou os bancos da praça ou imolou os cisnes. Nesta província há garotos que nunca viram piolhos, lojistas que nunca seguraram uma moeda falsa, quarentonas que nunca se meteram numa pocilga a não ser por diversão. Sim, em vinte anos fiz alguma coisa. Claro, não é o bastante. Há vilas nas redondezas, bem perto daqui, onde ainda acreditam em bruxas. Não há uma única cidade onde uma boa livraria conseguiria se sustentar. Pode-se contar nos dedos de uma mão quantas pessoas são capazes de resolver o enigma de Aquiles e a Tartaruga. Ainda assim, é um começo. Em vinte anos a escuridão foi empurrada alguns metros. E, afinal, esse Império todo fixado em alguns milhares de metros quadrados, onde é possível conduzir a vida segundo a Razão, o que ele é senão um minúsculo remendo de luz comparado com aquelas áreas imensas de noite bárbara, que o cercam por todos os lados, aquela selvageria de fúria
e terror, onde esses Mongóis idiotas são tidos como sagrados e mães parindo gêmeos são instantaneamente sentenciadas à morte, onde a malária é tratada na base do grito, onde guerreiros excepcionalmente corajosos obedecem o comando de usurpadoras histéricas, onde os melhores cortes de carne são dedicados aos mortos, onde, se virem um meiro branco, param todas as atividades do dia, onde acreditam cabalmente que o mundo foi criado por um gigante de três cabeças, ou que o movimento das estrelas é controlado a partir do fígado de um elefante selvagem?
E, mesmo assim, dentro deste remendo de civilização onde, sabe o céu a custo de quantas lágrimas e sangue, qualquer um com mais de doze anos não precisa mais acreditar em fadas ou que Causas Primárias residem em objetos mortais e finitos; mesmo aqui muitos ainda sentem falta daquela desordem, quando toda paixão gozava de êxtase libertino. César foge a seu campo de caça, abatido pelo tédio; na periferia da Capital, a Sociedade cresce freneticamente, corrompida por sedas e perfumes, amolecida pelo açú
car e água quente, insolente por causa dos teatros e escravos atraentes, e por toda parte (esta província inclusa) novos profetas brotam todo dia para declamar o velho canto bárbaro.
Tentei de tudo. Proibi a venda de cristais e tabuleiros ouija; levantei impostos violentos sobre o carteado; as cortes têm o poder de condenar alquimistas ao trabalho ingrato das minas; é crime previsto por lei arranjar briga ou sequer incitá-las. Mas nada teve efeito duradouro. Como posso esperar que as massas mostrem sensibilidade quando, por exemplo, até onde sei, o capitão de minha guarda carrega um amuleto contra o Olho Malvado, e o mercador mais rico da urbe consulta um médium sobre toda e qualquer transação econômica?
As leis são inúteis contra a ardilosa e submissa procissão que entoa dia sim, dia não destes tetos sob minha proteção: "Meu Deus, afastai a justiça e a verdade pois não podemos compreendê-las, não as queremos. A Eternidade nos arrasta, entedia. Deixai Vossos céus e descei a nossa terra de clepsidras e barracos. Tornai-vos nosso tio. Cuidai do Bebê, diverti o Vovô, levai a Madame à Ópera, ajudai Tiaguinho com a lição de casa, apresentai Muriel a um marinheiro bonitão. Sede interessante e fraco como nós, e vos amaremos como amamos a nós mesmos."
A Razão agora é inútil, e mesmo o Compromisso Poético não mais funciona, todos aqueles contos de fadas nos quais Zeus, fantasiando-se de cisne ou boi ou chuva de ouro ou sabe-se-lá-o-quê, deitava-se com uma garota qualquer e paria um herói. O Público tornou-se sofisticado demais; consegue detectar, sob todas essas metáforas charmosas e símbolos, a rígida ordem: "Sê e age heroicamente"; por trás do mito da origem divina, sente a verdadeira excelência humana tentando afastar sua própria mediocridade. Daí, com um grito de raiva, joga a Poesia ladeira abaixo e clama pela Profecia. "Sua irmã acabou de me ofender. Eu pedi por um Deus que fosse o mais parecido possível comigo. Que interesse eu tenho num Deus cuja divindade é fazer coisas difíceis que eu não posso fazer, ou falar coisas inteligentes que eu não consigo entender? O Deus que eu quero e pretendo conseguir deve ser alguém que eu posso reconhecer logo sem ter que esperar sentado ele dizer ou fazer alguma coisa. Não pode ter nada extraordinário nele. Prod
uz ele de uma vez, vai. Cansei de esperar."
Hoje de manhã, a julgar pela aparência dos três que vieram me consultar com um sorriso extático em seus rostos acadêmicos, o trabalho é findo. "Deus nasceu", clamaram, "vimo-lo nós mesmos. O Mundo está salvo. Nada mais importa."
Não precisa de muita psicologia para compreender que este rumor, se não for abafado imediatamente, será capaz de infectar todo o Império em poucos anos, e não é preciso ser profeta para predizer as consequências caso isso aconteça.
A Razão será substituída pela Revelação. No lugar da Lei Racional, isto é, de verdades objetivas, as mesmas para todos, e disponíveis a qualquer um que se submeta à disciplina intelectual necessária; o Conhecimento degenerar-se-á num conjunto de retalhos, visões subjetivas - espasmos no plexo solar induzidos por subnutrição, imagens angelicais geradas por febres e drogas, avisos oníricos inspirados pelo som das cachoeiras. Verdadeiras cosmogonias serão sistematizadas a partir de algum resentim
ento pessoal esquecido, grandes épicos escritos em linguagens particulares, os garranchos de moleques rivalizando as maiores obras-primas.
O Idealismo será substituído pelo Materialismo. A Priapo será suficiente mudar-se para um outro endereço e mudar seu nome para Eros, tornando-se assim o queridinho das cinquentonas. A vida pós-morte será um banquete onde todos os convidados contam vinte anos. Afastada da velha e bastante ordinária válvula de escape do patriotismo e orgulho familiar ou civil, a ânsia das Massas materialistas por algum Ídolo vísivel que possam venerar desembocará em canais totalmente anti-sociais, e educação nenhuma poderá remediá-los. Honras divinas serão oferecidas a bules de prata, buracos vazios na terra, nomes em mapas, bichos de estimação, moinhos em ruínas, e até, em casos extremos que se tornarão cada vez mais comuns, dores de cabeça, ou tumores malignos, ou às quatro da tarde.
A Justiça será substituída pela Piedade como a virtude cardinal humana, e desaparecerá todo temor de castigo. Qualquer marginal vai se vangloriar: "Eu pequei tanto que Deus teve que descer em pessoa pra me salvar aqui em baixo. Devo ser o capeta em pessoa." Qualquer malandro vai argumentar: "Gosto de cometer crimes. Deus gosta de perdoá-los. Que ordem bacana é essa do mundo!
" E a ambição de qualquer jovem soldado será assegurar a penitência em seu leito de morte. A Nova Aristocracia será formada exclusivamente por ermitões, vagabundos e inválidos. O Diamante Bruto, a Puta Ninfomaníaca, o bandido que ama sua mãe, a garota epiléptica que se dá bem com animais, estes serão os heróis e heroínas da Nova Tragédia, agora que o general, o político, e o filósofo se revelam os patetas de qualquer farsa ou sátira.
Naturalmente, não podemos deixar que isso aconteça. A civilização deve ser salva mesmo às custas de chamar os militares, o que é, suponho eu, o caso. Quanta complicação.
Por que é que a civilização sempre acaba por chamar esses dedetizadores profissionais, aos quais não importa se é Pitágoras ou um lunático homicida que foram instruídos a exterminar. Ó vida, Essa criança maldita não podia ter nascido noutro lugar? O povo não pode ter bom senso? Por quê? Não quero ser injusto. Por que não conseguem enxergar que a noção de um Deus finito é absurda? Porque é. E imagine, hipoteticamente, que não seja, que a ladainha é verdade, que essa criança é de alguma maneira inexplicável tanto Deus quanto Homem, que ela cresce, vive, e morre, sem cometer um único pecado? Isso melhoraria algo na vida? Pelo contrário, iria torná-la muito, muito pior. Pois só poderia significar uma coisa: uma vez mostrado como, Deus esperaria que cada homem, não importa sua fortuna, levasse uma vida sem pecados na carne e na terra. Aí que a raça humana mergulharia em loucura e desespero. E eis que me parece que, neste momento, Deus me deu o poder de destruí-Lo. Eu recuso minha inclusão nessa história. Ele não poderia pregar uma piada tão infame e horrível. Por que ele não poderia gostar de mim? Trabalhei duro como um escravo. Pergunte a quem quiser. Leio toda a correspondência oficial, uma por uma. Tomei aulas de retórica. Quase nunca aceitei subornos. Como Ele ousa permitir que eu tome tal decisão? Tentei ser bom. Escovo meus dentes toda noite. Não transo faz um mês. Eu contesto. Sou um liberal. Quero que todos sejam felizes. Quisera eu nunca ter nascido.

II
[SOLDADOS]

Quando a Guerra dos Sexos acabou com a chacina das Vovós,
Encontraram um bebê de solteira sufocando sob as velhas;
Alguém o chamou de Jorge e aí foi o fim da história:
Arrastaram ele pros Milicos.
Jorge, seu velho moleque,
Como foi virar Milico?

No Reduto da Razão desertou no seu cavalinho-de-pau
E viveu com a fadinha, até que se cansou de chutá-la por aí;
Esmagou suas lentes e roubou suas tabuinhas e o poncho,
E voltou correndo pros Milicos.
Jorge, seu velho folgado,
Como foi virar Milico?

Antes da Dieta do Açúcar ele usava navalhas

E logo foi embora, alérgico aos grelinhos;
Descobriu ele mesmo uma cura, mas ninguém queria patentear,
Então ele voltou pros Milicos.
Jorge, seu velho malandro,
Como foi virar Milico?

Quando as Cruzadas dos Vícios acabaram foi convocado por uns Muscovitas
Querendo vender desodorantes pros Esquimós;
Foi tomado por uma baita gripe e condenado às minas de uísque,
Mas deu um jeito de voltar pros Milicos.
Jorge, seu velho Imperador,
Como foi virar Milico?
Desde que assinaram a Paz com a Honra ele fica aí na dele;
Mas, ops, aí vem Sua Preguiça, abotoando o uniforme;
Bem na hora de massacrar os Inocentes;
Voltou pra casa, com seus Milicos.
Jorge, seu velho matador,
Te saúdam os Milicos.

III
[RAQUEL]

Na Esquerda cães sorridentes, perigando o precipício da solitude, fundo demais para se encher de rosas.
Na Direita ovelhas sensíveis, sobreatônitas ao alarde no qual não crescerão so
nhos.
No meio deste despercício esmo de loucura perde-se um garoto, falando de Há Muito Tempo Atrás no idioma das chagas.
Amanhã, talvez, ele encontrará ele no Céu.
Mas cá torna a Tristeza seu silêncio - não nesta direção, tampouco naquela, nem por qualquer motivo.
E sua frieza agora é a terra sempre.


* * * * *

§3.
A.D. VIII KAL. OCT. (ou, o Vinte-e-três de Setembro).

V. Augusto nasceu em 23 de Setembro de 63 a.C., a saber, durante o consulado de Marco Túlio Cícero e Caio Antônio, pouco antes do pôr-do-sol, na rua das Cabeças de Gado no Palatino, onde hoje pode-se ver um oratório fundado após sua morte. Conforme consta nos atos do Senado, quando um jovem de família patrícia chamado Caio Letório, ao clamar ante os senadores leniência frente a uma acusação adultério, apelou não apenas à sua idade e integridade, como também alegou ter posse do próprio solo onde o Divino Augusto veio ao mundo, como se fosse de lá o guardião, e afirmou também que Augusto era de certa maneira seu deus particular e o favorecia; doravante, o Senado votou a sacralização daquela parte da casa. VI. Sua enfermaria está aberta a visitações ainda hoje, nos subúrbios de uma vila onde morava sua família, perto de Velitrae; lugar assaz modesto, quase uma despensa. Se ele nasceu lá, é o que afama nos arredores. Fato é que ninguém ousa entrar no quarto a não ser se impelido pela necessidade e devoção profunda pois, segundo uma velha lenda, quem o fizesse seria consumido por grande horror e medo, e, à época, tal boato logo foi confirmado: certa feita, um novo proprietário resolveu ir lá dormir, seja por mero acaso ou a fim de atestar a veracidade do caso. Eis que, após poucas horas de sono, foi expelido por algum tipo de força súbita e desconhecida, sendo depois encontrado semi-consciente, junto com seu cobertor, à porta da casa. VII. Ainda bebê, foi dado a Augusto o sobrenome de Thurius, em memória do local onde nasceram seus avós, ou ainda porque, recém-nascido o imperador, seu pai Otávio suprimiu uma revolta de escravos na região de Thurii. Posso certificar que seu sobrenome era Thurinus pois, quando garoto, tinha eu uma velha estátuazinha em bronze com este epíteto cravado em letras de ferro quase apagadas pela idade; então dei-a ao imperador, que hoje o guarda zelosamente em seu quarto com os outros Lares¹. Mas geralmente ele era chamado de Thurinus de maneira ofensiva, como podemos ler nas cartas de Marco Antônio; Augusto, por sua vez, nada mais replicava além de não entender porque seu antigo nome era usado tão insistentemente para injuriá-lo. Mais tarde assumiu o nome de Caio César e, após, de Augusto; o primeiro atendendo ao testamento de seu avô, o outro segundo sugestão de Munácio Plâncio. Houve alguns que argumentaram em favor de chamá-lo por Rômulo; de fato, ele era um tipo de segundo fundador de Roma; no entanto, prevaleceu que fosse chamado de Augusto, sobrenome não apenas inédito como mais digno, pois "augustos" são chamados os locais sagrados, nos quais são consacrados os agouros, seja pela palavra auctus [aumento] ou pela expressão auium gestu gustuue [segundo o mover ou comer das aves]², como ensina Ênio neste verso:

quando em agouro augusto foi Roma fundada.

*

V. natus est Augustus M. Tullio Cicerone C. Antonio css. VIII. Kal. Octob. paulo ante solis exortum, regione Palati ad Capita bubula, ubi nunc sacrarium habet, aliquanto post quam excessit constitutum. nam ut senatus actis continetur, cum C. Laetorius, adulescens patricii generis, in deprecanda grauiore adulterii poena praeter aetatem atque natales hoc quoque patribus conscriptis allegaret, esse possessorem ac uelut aedituum soli, quod primum Diuus Augustus nascens attigisset, peteretque donari quasi proprio suo ac peculiari deo, decretum est ut ea pars domus consecraretur. VI. nutrimentorum eius ostenditur adhuc locus in auito suburbano iuxta Velitras permodicus et cellae penuariae instar, tenetque uinicitatem opinio tamquam et natus ibi sit. huc introire nisi necessario et caste religio est, concepta opinione ueteri, quasi temere adeuntibus horror quidam et metus obiciatur, sed et mox confirmata. nam cum possessor uillae nouus seu forte seu temptandi causa cubitum se eo contulisset, euenit ut post paucissimas noctis horas exturbatus inde subita ui et incerta paene semianimis cum strato simul ante fores inueniretur. VII. Infanti cognomen Thurino inditum est, in memoriam maiorum originis, uel quod regione Thurina recens eo nato pater Octauius aduersus fugitiuos rem prospere gesserat. Thurinum cognominatum satis certa probatione tradiderim nactus puerilem imagunculam eius aeream ueterem ferreis et paene iam exolescentibus litteris hoc nomine inscriptam, quae dono a me principi data inter cubiculi Lares colitur. sed et a M. Antonio in epistulis per contumeliam saepe Thurinus appellatur et ipse nihil amplius quam mirari se rescribit pro obprobrio sibi prius nomen obici. postea Gai Caesaris et deinde Augusti cognomen assumpsit, alterum testamento maioris auunculi, alterum Munati Planci sententia, cum quibusdam censentibus Romulum appellari oportere quasi et ipsum conditorem urbis, praeualuisset, ut Augustus potius uocaretur, non tantum nouo sed etiam ampliore cognomine, quod loca quoque religiosa et in quibus augurato quid consecratur augusta dicantur, ab auctu uel ab auium gestu gustuue, sicut etiam Ennius docet scribens:

AVGVSTO AVGVRIO POSTQVAM INCLVTA ROMA CONDITA EST.


(1) Eram os Lares deuses domiciliares, zelosos pelo ambiente doméstico; cada família, casa, indivíduo, tinha o seu ou muitos. O costume perdurou pela Idade Média e chegou até nós nas estátuazinhas de santos que adornam os lares das famílias cristãs. O imperador é Adriano.
(2) Os romanos usavam o substantivo avis também para agouro, por inserir grande importância à observação destes seres, em especial à águia, Júpiter animalesco e elo entre o mundo terreno e os céus, cf. alba avis em Tito Lívio. Herodes não está de todo certo.

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A tradução hoje foi tripartite: contou com três excertos, agora pormenorizados em conjunto.
O epigrama 58 do livro quinto dos Epigrammata de Marco Valério Marcial (ca. 38-ca. 102) foi vertido a partir da impressão da Oxoniensis, ed. W. M. Lindsay (Londres, 2007). O estudante de latim encontrará traduções confiáveis via Belle Lettres (H. J. Izaak em 3 vols., 1970) e na Loeb Classical Library (D. R. Shackleton Bailey em 3 vols., 1993); ao diletante, recomendamos a curiosa antologia Epigrams by Martial englished by divers hands (Univ. of California, 1987), hoje esgotada, com E. Pound, A. Pope, John Dryden, e outros vates cujo nome fez a fortuna; o livre de poche dos Épigrammes (Gallimard, 1992), no gálico de Jean Malaplate; e outro livreto em espanhol pela Alianza, o qual não consultei. Alguns epigramas foram traduzidos por João Ângelo Oliva Neto & outros na Poesia Lírica Latina (ed. Maria da Gloria Novak, Martins Fontes, última edição de 2003). Entretanto, aguardamos mais em português do boca do Orco aragonense, e logo teremos - há diversos pesquisadores traduzindo-o neste exato momento - e talvez num futuro próximo o texto integral dos Epigramas será final & dignamente submetido à lusa forja.

Do segundo, parte do oratório natalino For the time being ("Por enquanto"), do britânico W. H. Auden (1907-1973), publicado em 1942. Aos interessados na obra do poeta iorquino recomendamos os Collected Poems (ed. Edward Mendelsom, The Modern Library, 1976). Por aqui, Auden foi contemplado na série Poemas da Companhia das Letras, em trad. de José Paulo Paes e João Moura, Jr.; esgotada. De sua prosa temos alguns ensaios reunidos em dois livros específicos, The dyer's hand e Forewords and Afterwords (ambas publicações da Vintage, 1990), incisivos qual seus poemas. Foi característica de sua escrita a concisão, a argúcia que, sem rodeios ou inversões, calculava a posição das palavras e a construção da sintaxe em todas suas minuciosidades; dom raríssimo, somente se adquire após muito esforço e maturidade por parte dos escritores.
Por terceiro; os três parágrafos recontando o nascimento do Divus Augustus no De Vita Caesarum de Caio Tranquilo Suetônio (ca. 69/75-ca.130), biografista romano e secretário do imperador Adriano, foram vertidos a partir da ed. da Teubner, e cotejados com as traduções de Henri Ailloud & Paul Jal em 3 vols. para as Belles Lettres, no ainda pingue ano de 2003; e a de J. C. Rolfe em 2 vols. para a Loeb Classical Library, nos idos priscos de 1914. Há excelente tradução do poeta Robert Graves, The Twelve Caesars, ainda disponível via Penguin. Em português, temos publicações picotadas, e apenas uma versão integral, que já conta os anos de Príamo e Nestor.

O post de hoje desvenda ao gládio e ao joco os novos caminhos - itinera - que este blog tomará após meses inativo. Há diversos textos a serem revisados, publicados in the time being; entre os quais o Hino de Caedmon, um conto de Ambrose Bierce, um ou outro poema de Charles Bukowski, mais Moby Dick; no entanto, acredito que já me é possível traduzir algo do latim. Suetônio e Tácito são autores os quais pretendo verter na língua íbera; e, quam maximum credulus postero, quiçá Horácio e Ovídio.

terça-feira, 8 de março de 2011

Sete poemas de W. B. Yeats

William Butler Yeats (1865-1939) foi daqueles raros poetas que, não satisfeitos em fechar uma era e iniciar outra - no que dominou dois estilos de poesia tanto quanto díspares -, emergiu com voz própria, a maior do século XX na língua inglesa segundo Haroldo Florescência.

Quando jovem, ole Billyum crammed with toil no que aprendeu a versificar com os vitorianos tardios (William Morris), o pré-Rafaelitismo e os poetas da décadence, a 'geração trágica & doentia' dos poemas de salão, do esmero formal e da boemia; os simbolistas vertidos em inglês por Arthur Symons em The Symbolist Movement, aquele mesmo livro que apresentou Jules Laforgue a T. S. Eliot. Frequentou, com Symons, o Rhymer's Club londrino: formou-se, embora irlandês, mediante os escolhos bretões. Tematicamente, influenciaram-no a mitologia nórdica-celta, que viria a se transformar numa espécie de patriotismo após a revolução de 1911; o romantismo inglês, em especial Shelley e Blake; uma acepção bastante pessoal do platonismo; e, tardo, a teologia de Swedenborg e a filosofia historista de Vico. Porém, acima de qualquer Irlanda ou tradição, alheio a qualquer promoção pessoal, Yeats preocupava-se com a poesia.

Sua produção de juventude, da qual o épico The wanderings of Oisin é o primeiro livro, contempla personagens míticos. O herói Cuchulain, a condessa Cathleen-ni-Houlíhan, Aengus, Oisin o velejador, estão eivados nas paisagens naturais do condado de Sligo, onde o poeta passou sua infância. Utilizando elementos lendários, Yeats realiza tarefa dúplice, a de animar uma identidade notavelmente irlandesa ao passo que afirma a 'velha supremacia' da imaginação frente à realidade prosaica. O poeta era um idealista: costumava nomear-se o 'último romântico'.

Embora tenha publicado primeiramente um epílio, e eles composto noutros momentos de sua vida, será como Crossways (1889), prima coleção de versos líricos, que firmará seu nome na arte poética. Confundem-se estes versos lustrados com o movimento, nos fins do séc.XIX, do que se convencionou a chamar Crepúsculo Celta (Celtic Twilight) ao ressurgir o interesse pela história & mitologia irlandesa, tangida por linhas nacionalistas: fortalecer a cultura local através da produção de uma poesia 'própria', livre dos ditames da metrópole. Yeats e Lady Gregory estão no fronte deste movimento, em grande parte contínuo do revival britânico da literatura anglo-saxã em décadas anteriores - ambíguo, não há dúvidas. A influência da tradição britânica e a ânsia em criar algo notavelmente irlandês, o embate entre imaginação e realidade, encarnam dois dilemas entre si inseparáveis no jovem Yeats: mad Ireland hurt him into Poetry. Este movimento de 'nacionalização/internacionalização' da Irlanda encontra expressão noutros escritores, de antes e durante, tal J. M. Synge e The playboy of the western world; e cristalizou-se naquela obra que fixou a insula erigena no mapa da literatura, a mais cosmopolita e provincial de todas, a justa representante máxima do modernismus: falo do Ulisses.
A citação de Joyce não é mero pedantismo. O poema que se segue, desta primeira fase visionária e idealista, 'decadente' do autor, é aquele recitado, no Retrato do artista quando jovem, por Stephen Dedalus ao leito de morte de sua mãe.

QUEM VAI COM FERGO? (1893)

Quem conduz com Fergo agora,

E pinça a alfombra de úmbreos troncos,
E dança sobre areias alvas?
Desfranze o rosto, jovenzinho,
E lentos olhos, ninfa, os alça,
E aquietas terna e não mais temas.

E não mais fujas nem aquietas
O acro lampejo dos amantes;
Pois conduz Fergo em áureas rodas,
E reina todos troncos úmbreos,
E o calmo seio do mar fosco,
E os andarilhos astros todos.

*

WHO GOES WITH FERGUS? (1893)

Who will drive with Fergus now,
And pierce the deep wood's woven shade,
And dance upon the level shore?
Young man, lift up your russet brow,
And lift your tender eyelids, maid,
And brood on hopes and fear no more.

And no more turn aside and brood
Upon love's bitter mystery;
For Fergus rules the brazen cars,
And rules the shadows of the wood,
And the white breast of the dim sea,
And all dishevelled wandering stars.

Sugestões do ato sexual são incorporados através de movimentos sonoro-imagéticos em versos cujo ritmo iâmbico, assaz sensível em vogais ora graves ora agudas, contribuem ao encanto (artificiosamente) simples engendrado pelo poema. O ritmo poético, definiu-o Yeats em The symbolism of poetry (1900); espécie de transe onde a monotonia do metro regular rompia-se em sílabas fortes, vogais inusitadas, fazendo do leitor hipnotizado e desperto ao mesmo tempo, como se este permanecesse num eterno estado de vigília.

O jovem Yeats encontra maturidade no livro The rose, de 1893. Nele foram publicados, a parte do poema acima, a releitura de Ronsard em When you are old e o bucólico The lake isle of Innisfree ('The only poem of mine which is widely known', diz ele numa gravação duas décadas depois). Sua produção posterior, The wind among the reeds (1899), continua a linha lírico-mitológica em The hosting of the Sidhe e Song of the wandering Aengus, entretanto relampeia traços de experimentação na prosódia, ao que a voz do poeta ganha força nas rimas toantes do soneto He remembers forgotten beauty e no tour-de-force que é o aparentemente singelo He wishes for the cloths of heaven.

O BANDEAR DOS SIDHE. (1899)

O bando corre por Knockarea
E sobre a tumba de Clooth-na-Bare;
Caoilte agita sua crina em brasa
E Niahm chamando
Acá, venha acá:
Teus sonhos mortais os deixa já.
Os ventos sustam, as folhas dançam,
O rosto é pálido, os cachos lançam,
A fronte pesa, os olhos esplendem,
Os braços rugem, os lábios fremem;
E se algum fitar tropel avante,
Ficamos entre ele e o feito de seu punho,
Ficamos entre ele e o pulso de seu peito,
A tropa por noite e dia errante,
E donde há maior impulso ou feito?
Caoilte agita sua crina em brasa
E Niahm chamando
Acá, venha acá.

*

THE HOSTING OF THE SIDHE. (1899)

The host is riding from Knocknarea
And over the grave of Clooth-na-Bare;
Caoilte tossing his burning hair,
And Niamh calling
Away, come away:
Empty your heart of its mortal dream.
The winds awaken, the leaves whirl round,
Our cheeks are pale, our hair is unbound,
Our breasts are heaving, our eyes are agleam,
Our arms are waving, our lips are apart;
And if any gaze on our rushing band,
We come between him and the deed of his hand,
We come between him and the hope of his heart.
The host is rushing 'twixt night and day,
And where is there hope or deed as fair?
Caoilte tossing his burning hair,
And Niamh calling
Away, come away.

Segundo o mito, os Sidhe (Aos Sí) são seres semelhantes a fadas - furentes e perigosas, como sói as lendas gaélicas. Habitantes das campinas, a eles são vinculadas diversas espécies: os leprechauns, a banshee, e demais espíritos.

Virado o século, ameaçara Yeats o destino de tantos poetas de sua geração, o de tornar-se relíquia prisca, autor de mero 'interesse temporário', como hoje o é John Masefield. A capacidade de se adaptar e reinventar-se explica a força de Yeats como poeta ao longo de cinquenta anos ativos. Seu ânimo juvenil adquire novos tons ao longo de sua obra, porém nunca é absolutamente abandonado. Abandonam-se não as máscaras mitológicas ou o gosto pelo símbolo, tampouco o combate (Yeats definia a poesia como um 'embate consigo mesmo'), ou a construção imagética em símbolos; abandona-se o lirismo qual Wordsworth, 'carente de coisas longínquas'. Dispõe-se Billyum a extirpar os ornamentos e abstrações de sua poesia.

De fato, o embate entre imaginação e realidade apresenta-se dantes, em The Stolen Child por ex. Daí que a virada trouxe a Yeats aquele tipo de ranço do velho século; dada a representação palpável do entre-séculos na morte da gordota Vitória em 1901, fazia-se imperativo transmudar-se. Dos tumultos entre Inglaterra e Irlanda, da incongruência entre seu ideal de mundo e o sensível, do bom-senso em reconhecer que sua versificação primeira havia se esgotado, e do contato com os modernistas aproximam o poeta da realidade político-social: avivam nele o gosto pelo experimentalismo, pela linguagem de registro popular e irônico. No modernismo, o poeta encontrará a superação do ditame Inglaterra/Irlanda, emergindo com voz unívoca: embora sua poesia seja notadamente irlandesa, de uma maneira que a de Wilde e Shaw não era, vai além disso; sintetiza e sedimenta toda tradição anglófona precedente, e abre portas aos poets to come. Pai e Filho do Modernismo, Yeats flertará com o verso livre; escreverá peças noh (At the Hawk's Well); criará prosódia própria, semelhante ao sprung rhythm de G. M. Hopkins.
O próprio poeta assinalou este rompimento em diversos momentos. Menciono A coat, no qual o afirma haver 'maior proeza em andar despido'. A coat foi publicado em Responsibilities (1914) - obra máxima desta segunda fase -, onde também encontramos seus famosos versos do September 1913 ('Romantic Ireland's dead and gone, / it's with O'Leary in the grave') e as Closing rhymes. Distanciando-se do idealismo efusivo, Yeats aproxima sua imaginação criativa do real - dos problemas sociais de seu tempo - e também das formas elementares, despojadas da pompa parnasiana. Outras são agora suas fontes de inspiração. Entretanto, seu versejar torna-se mais artificioso, próximo àquele 'Alto Modernismo', ou 'modernismo reacionário'. segundo o outro. No combate à alienação do beletrismo, reafirma-se o poder consciente da imaginação e a figura do poeta marginalizado, encarnando velhos valores confrontados com a 'degeneração' da cultura. Terceiro ditame em sua vida e obra, cá no plano político, endurece numa posição aristocrática e pessimista do mundo. Yeats enxerga apenas duas situações nas quais as artes poderiam florescer: uma tradição de mecenato onde duques cultivavam 'gênios', como no Renascimento, e como concluiria também Ezra Pound; ou numa cultura não-materialista, rural, dos bardos criando 'belas histórias e lendas, pois nada têm a perder'. O perigo do escapismo reaperece; o embate imaginação e realidade adquire novos tons, e permanecerá, como maré e ressaca, por toda obra de Yeats.
Reflexão em tempos da Guerra, o poema abaixo fora escrito para Lady Gregory, em homenagem a seu filho, tué par l'ennemi.

UM AVIADOR IRLANDÊS PREVÊ SUA MORTE. (1918)

Encontrarei meu fim no meio
Das nuvens de algum céu sobejo,
Os que combato, eu não odeio,
Também não amo os que protejo;
Kiltartan Cross é meu país,
Seus pobres são a minha gente,
Nada a fará mais infeliz
Do que já era, ou mais contente.
Não é por lei ou por dever,
Turba ou políticos, que luto,
Mas pelo afã de me entreter,
A sós, nas nuvens em tumulto.
Tudo na mente foi pesado:
Nada que espere ou que recorde
Vale-me a pena comparado
Com esta vida ou esta morte.

[In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia, São Paulo: Imago, 1998]

*

AN IRISHMAN FORESEES HIS DEATH. (1918)

I know that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate,
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan's poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.
Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public men, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death.


Yeats nunca foi um homem do povo. Enquanto fosse, no dizer de Edward Said, um poeta da "descolonização", defensor dos direitos de livre pensar e livre dizer, da liberdade de expressão na arte, da soberania dos povos, do direito de trabalho das mulheres e da livre opção sexual; condenava a violência como ferramenta de mudança, e acreditava que o popular não teria capacidade para ser artista: crítico da democracia como muitos intelectuais de sua época, simpatizante do fascismo, Yeats sonhava com uma hierarquia semelhante ao cavalheirismo vitoriano, uma espécie de República platônica onde os valores seriam salvaguardados pelos intelectuais e "os melhores" governariam. Era um homem muito parecido com John Milton: o radical puritano que lamenta jogar pérolas aos porcos. Aristocrata e misantropo, radical nas escolhas individuais mas titubeante quanto a participação social. Incorreu no velho erro de inúmeros pensadores: o de considerar o indivíduo fraco, incapaz de decidir-se por si mesmo, carente de um 'guia' ou 'profeta', como vimos nos ismos vintecentistas, e como ainda vemos hoje nos bastiões universitários.

Antes de Responsibilities, publicara In the Seven Woods (1903) no qual já assinalava o desvio de seu olhar poético, seja na simplicidade da capa-azul do livro, repudiante dos embróglios dourados dos tomos decadentistas, às linhas de The folly of being comforted: nestas, a imagem que o poeta tem de sua amada é desmascarada pela realidade palpável do envelhecimento, à conclusão semelhante ao Eclesiastes - 'tudo é vaidade'; mais, em The Green Helmet and other poems (1910) está o elíptico soneto The fascination of what's difficult. Menos utópico, mais melancólico, embora emanando a 'estranha felicidade', tragic joy, da qual certa vez falou Yves Bonnefoy sobre o poeta.
Sem titular comparações sórdidas de psicobiografia, suas constantes desilusões com a ativista irlandesa Maud Gonne são elemento importante na análise de sua obra e foram responsáveis por magníficos poemas de remorso escritos em nosso magro século. Desta musa inspiradora/maledicente segue o poema abaixo, publicado em The Green Helmet:

SEM SEGUNDA TRÓIA. (1916)

Por que culpá-la por encher minha existência
De miséria e, mais tarde, enquanto a ação expande,
Aos ignorantes ensinar a violência,
Ou atirar rua pequena contra grande,
Mesmo sem a coragem que o anelar reclama?
Como seria tranquila, com aquela mente
Que a nobreza moldou singela como a flama?
Ou com o encanto do arco retesado, um ente
Não natural em nosso mundo, por seu jeito
Muito severo e sempre altivo e singular?
Ora, sendo como é, que mais teria feito?
Havia nova Tróia para ela queimar?

[In: VIZIOLI, Paulo (trad.). Poemas de W. B. Yeats, São Paulo: Companhia das Letras, 1992]

*

NO SECOND TROY. (1916)

Why should I blame her that she filled my days
With misery, or that she would of late
Have taught to ignorant men most violent ways,
Or hurled the little streets upon the great,
Had they but courage equal to desire?
What could have made her peaceful with a mind
That nobleness made simple as a fire,
With beauty like a tightened bow, a kind
That is not natural in an age like this,
Being high and solitary and most stern?
Why, what could she have done being what she is?
Was there another Troy for her to burn?


Poemas nos quais o verso miltoniano se quebra; ou melhor, solta-se Cabe aqui traçar paralelo com dois autores: um em nossa língua, outro norte-americano. A quem ainda não o conhece, comparar Yeats, em sua trajetória e ânimo, a nosso poeta menor, Manuel Bandeira, ilumina: ambos foram 'pontes' entre a poesia do mauvais siècle e do bright new century; além, emergiram como vozes individuais impassíveis de serem presas aos cadernos escolares. Ambos foram, em suas respectivas línguas, os maiores poetas líricos de seu tempo. Outro paralelo interessante, este feito pelo crítico canadense Hugh Kenner, é com Henry James, a ponte entre o século XIX e o XX, o primeiro a intuir o (new) sense of one's own age naquele fatídico jogo de futebol americano. James era, segundo Pound, aquele que 'morto, não há mais a quem perguntar sobre nada'. Yeats também o foi na poesia: Pound mudou-se para Londres justamente por considerar Billyum o 'poeta que mais entende sobre o verso' àqueles dias.
Um outro poema, publicado em The wild swans at Coole (1919) e revisado em 1929, embora mantenha a métrica formal, investe contra idéias estabelecidas em sua disposição estranha de sílabas e em conteúdo:

OS ACADÊMICOS (1929 ver.)

Péla-cabeças, ciosos do pecado,
Doutos, vetustos, pélas admirados,
Editam e analisam verso-a-verso
Que outrora jovens em divãs largados
Rimaram em paixão e tibiez
À orelhinha ignorante da beleza.

Agitam-se e engasgam-se com tinta;
Arrastam o carpete nos sapatos;
Assumem o que todos outros pensam;
Afastam quem não têm averiguado;
Que diriam, a torto e a direito,
Se Catulo rebolasse desse jeito?

*

THE SCHOLARS (1929 ver.)

Bald heads, forgetful of their sins,
Old, learned, respectable bald heads
Edit and annotate the lines
That young men, tossing on their beds,
Rhymed out in love's despair
To flatter beauty's ignorant ear.

All shuffle there, all cough in ink;
All wear the carpet with their shoes;
All think what other people think;
All know the man their neighbour knows.
Lord, what would they say
Did their Catullus walk that way?

Investida quasi-poundiana contra o mundo acadêmico.

Na fase final da poesia yeatsiana, novos contornos tangem aquele platonismo reativo ao mundo das idéias. Mergulha o poeta numa mística visionária e espiritual complexa, calcada em Blake, Swedenborg e no historismo de Vico. Há muito Yeats flertara com ocultismos afins; o poeta participara durante longo tempo da Ordem Hermética do Alvorecer Dourado; realizava seções mediúnicas com sua esposa, George. Interessou-se pela escrita automática, comunicação com o Tártaro ao intuir do poeta. Para a compreensão deste período, refiro à obra do próprio Yeats, A vision (1925; 1937), onde o autor delimita sua filosofia do tempo transcendental e sua relação com a história mundana (os 'vórtices') e, no meio, o indivíduo. Não se deve entender que esta guinada ao misticismo retoma o idealismo juvenil do poeta: maduro, Yeats concilia-se com as turbulências políticas de sua época, no belíssimo Easter, 1916 (a terrible beauty is born). Ademais, através da dialética estético-metafísica delineada em A vision, Yeats tentará unir o ideal do real num movimento incessante, cá o imóvel ponto do mundo que gira no qual dança Michael Robartes. Projeto este que domina sua produção final, mas que, problematizado, não apela a conclusões fáceis. O sensível ainda discorda do ideal em termos. Tornam-se temas preponderantes desta terceira e última fase o tempo e a mortalidade. Poemas tornam-se mais herméticos.

A SEGUNDA VINDA. (1919)

Rodando em giro cada vez mais largo,
O falcão não escuta ao falcoeiro;
Tudo esboroa; o centro não segura;
Mera anarquia avança sobre o mundo,
Maré escura de sangue avança e afoga
Os ritos da inocência em toda parte;
Os melhores vacilam, e os piores
Andam cheios de irada intensidade.

Aí vem por certo uma revelação.
Por certo próxima é a Segunda Vinda.
Segunda Vinda! Digo essas palavras,
E do
Spiritus Mundi vasta imagem
Turba-me a vista: ao longe, no deserto,
Um corpo de leão com rosto de homem,
O olhar vazio e duro como o sol,
As lerdas coxas move, enquanto em torno
Rondam sombras de pássaros coléricos.
Retorna a escuridão; mas ora eu sei
Que a vinte séculos de sono pétreo
Vexou o pesadelo de um bercinho;
E que rude animal, chegado o tempo,
Arrasta-se a Belém para nascer?

[In: VIZIOLI, Paulo (trad.). Poemas de W. B. Yeats, São Paulo: Companhia das Letras, 1992]

*

THE SECOND COMING. (1919)

Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of
Spiritus Mundi
Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?


Alguns críticos tiveram a pachorra de definir estes anos finais como 'prosaicos'. Erro: neste período - pós-'20s - encontramos os versos mais memoráveis do autor em Sailing to Byzantium, Among school children, Two songs for a play, A dialogue between self and soul. Pois diferente de muitos poetas que definham na velhice (a Yeats, perigosamente Wordsworth), a produção do irlandês em seus anos finais ainda impressiona. Torna-se o poeta polêmico, virulento, abandona as papas na língua. Faz parte das duas décadas derradeiras os livros Michael Robartes and the dancer (1921), The tower (1928) e The winding stair and other poems (1933). No término de suas publicações em vida estão os New Poems (1937) com Lapis Lazuli e o irônico What then?.

O próprio poeta empreendeu uma revisão de sua obra em diversas biografias, e no poema tardio The circus animals' desertion, destaque de sua última coleção de versos líricos, o póstumo Last poems (1939) com Long-legged fly, onde o poeta detém três figuras histórico-mitológicas - César, Helena, Michelangelo - em momentos de decisão pessoal que acabaram por mudar os rumos da história, numa reflexão semelhante às de Kaváfis.
Concilia-se o poeta com a própria morte em Cuchulain Comforted - composto dias antes desta o visitar.

CUCHULAIN CONSOLADO. (1939)

Um homem tinha seis golpes mortais, um homem
Violento e meritório vagava entre os mortos;
Olhos despontam dos arbustos, logo somem.

Sudários uns que sussurravam ombro a ombro
Vieram e sumiram. Sobre sangue e golpes
Como se meditasse, se escorou num tronco.

Um Sudário cujo semblante era notório
Veio mediante os canoros seres, cedendo
Um feixe de linho. E os Sudários, pouco a pouco,

Ante o homem inofenso iam bruxuleando.
E o Sudário-linheiro aferiu sem demora:
'Tua vida será tão mais doce se fiando

'Um sudário seguires nossa velha norma;
Somente tanto e pelo pouco que sabemos
O agito daqueles braços nos atemora.'

'No olho d'agulha erramos; tudo que fazemos
Fazemos em conjunto.' Dito e feito, o manto
empunhou o mais próximo e trouxe o fiamento.

Agora cantaremos, e o melhor cantemos,
Porém antes lhe revelamos nosso ganho:
Covardes todos nós, talhados pelo sangue,

Ou dele expulsos, reles a morrer de pranto.'
Cantaram, mas não era humano o tom e o coro,
Contanto fora tudo feito como dantes;

Cingiram suas gargantas e tinham-nas canoras.

*

CUCHULAIN COMFORTED. (1939)

A man that had six mortal wounds, a man
Violent and famous, strode among the dead;
Eyes stared out of the branches and were gone.

Then certain Shrouds that muttered head to head
Came and were gone. He leant upon a tree
As though to meditate on wounds and blood.

A Shroud that seemed to have authority
Among those bird-like things came, and let fall
A bundle of linen. Shrouds by two and three

Came creeping up because the man was still.
And thereupon that linen-carrier said:
'Your life can grow much sweeter if you will

'Obey our ancient rule and make a shroud;
Mainly because of what we only know
The rattle of those arms makes us afraid.

'We thread the needles' eyes, and all we do
All must together do.' That done, the man
Took up the nearest and began to sew.

'Now must we sing and sing the best we can,
But first you must be told our character:
Convicted cowards all, by kindred slain

'Or driven from home and left to die in fear.'
They sang, but had nor human tunes nor words,
Though all was done in common as before;

They had changed their throats and had the throats of birds.

* * * * *

A melhor edição atual da poesia de Yeats é a da Scribner anotada por Richard J. Finneran, disponível em capa-dura (& mais completa) e brochura. Toda a obra de Yeats, peças inclusas, vem sendo publicada pela mesma editora já há algum tempo; resta apenas a revisão de A vision, de 1937, completando os quatorze volumes. Como introdução, o estudante encontra ótimo material na edição da Major Works (ed. Edward Larrissy) da Oxford. Àqueles que pretendem iniciar um estudo sério do poeta, recomendo a edição crítica da Norton (ed. James Pethica), com textos de Eliot, Pound, Perloff, Heaney &tc. Em nosso idioma luso, a melhor tradução do poeta é aquela de Paulo Vizioli para a Companhia das Letras, hoje esgotada, encontrado com facilidade em sebos. Augusto de Campos transcriou outro punhado na Poesia da recusa; Péricles Eugênio da Silva Ramos também em Poemas, pela Art editora; Nelson Ascher selecionou alguns no indispensável Poesia alheia; Ivo Barroso um resto em O torso e o gato. Para o francês, ainda famosa é a transcriação de Yves Bonnefoy; mais recentes são as de Jean Briat.

A lápide de Yeats está em Drumcliffe, condado de Sligo, Irlanda; onde an ancestor was rector there / long years ago, a church stands near, / by the road an ancient cross. Lá, under Ben Bulben, quereria ele ser enterrado, como se lê no epitáfio epigramático, conclusão do poema homônimo:

Cast a cold eye,
On life, on death,
Horseman, pass by!


Morreu em Menton, França, em 1939; ao tempo da invasão nazista, ordenou-se que fosse retirado e jogado em vala comum. Após a Guerra e muita discussão, seu "corpo" - um caixão qualquer - retornou à sua pátria. São ínfimas as chances de sequer um osso ser do poeta. Assoma o mistério da figura, e também irônico, mesmo se triste, que seus restos mortais perderam-se entremeio a ralé operária, ao passo que em sua cova sobram, como as dúbias relíquias dos santos medievais, ossos das vítimas anônimas da guerra.

Meedle-ag'd Billyum no vira-séculos, 1900s

Indeciso quanto aos seus versos - considerava a publicação mera etapa na produção autoral, sequer a última - e sua posição pública - debatente entre o ímpeto de atuação direta na história e o desejo de quietude em Thor Balylee -, Yeats, de Flaco tua estirpe, you were silly like us.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

All these are vile

Tendo recomeçado o ano acadêmico - o último no Dept. de História -, e confrontado com burocracias mil nesta última semana, não consegui ainda terminar a tradução de mais três capítulos do Moby-Dick, os quais seguem tão-logo sopre Noto (promessa factível neste Fevereiro so full of frost, of storm, and cloudiness). No mais, termino a nota histórica sobre W. B. Yeats; e reviso as traduções que fiz de Manuel Bandeira ao inglês, ao longo dos meses que morei na Inglaterra & agora, versões estas que pretendo ver publicadas algum dia.
Traduzi hoje mesmo e como exercício o soneto aí embaixo, do Britishe nightingale John Keats. Posterior ao primeiro romantismo inglês (Wordsworth e Coleridge), o poeta dificilmente pode ser 'encaixado' na geração seguinte. Figura insólita, morreu jovem (1821, aos 26 anos), e seu verso muito tem da imagética neoclassicista, embora livre do pedantismo eufônico dos dísticos heróicos; ao passo que sua sintaxe, em anacolutos e hipérbatos, o aproxima da flexibilidade do byronismo; e sua prosódia cheia de sinuosidades rítmicas já prenuncia o sprung rhythm de Gerard Manley Hopkins.
a
No, no, got not to Lethe, neither twist
wolf's-bane, tight-rooted, for its poisonous wine;

Na Ode on Melancholy (trad. por Péricles Eugênio da Silva Ramos e disponível num livreto da hedra). O diletante encontrará boa seleção de Keats, mais uma vez, pela Norton, acompanhando ensaios críticos. Seus poemas completos foram publicados pela Modern Library. Péricles; e também A. de Campos verteu o poeta ao português, no Entreversos (Unicamp) em conjunto com Byron.
Keats, assaz criticado em sua época, acusado de ininteligibilidade & hermetismo, fora destarte admirado por contemporâneos do quilate de Shelley (que lhe dedicou o Adonais) e Byron. E, como seus jovens companheiros, morreu ex patria, sepultado no Cimitero accatolico di Roma, onde também jaz o afogado Alastor. Em sua lápide, não há seu nome, lê-se apenas, ao ânimo anacreôntico deste que foi admirador ímpar dos clássicos,

This grave
contains all that was mortal,
of a
YOUNG ENGLISH POET
Who,
In his Death-Bed,
In the Bitterness of his Heart,
At the Malicious Power of his Enemies,
Desired
These Words to be engraven on his Tomb Stone,
"Here lies One whose Name was writ in Water."

*

Esta tumba
contém todo que era mortal,
de um
JOVEM POETA INGLÊS
Que,
Em seu Leito-de-Morte,
No Amargor de seu Coração,
Frente ao Poder Malicioso de seus Inimigos,
Desejou
Tais Palavras a serem cravadas em sua Lápide,
"Aqui jaz Um cujo Nome grafou-se em Água."


John Keats em seu leito de morte, por Joseph Severn

* * * * *

'TODOS ESTES SÃO VIS'.

Os versos da
Mansão do Luto do Sr. Scott,
um sermão lá na Santa Madalena, o choro
que esparrama num conto açucarado, o gozo
que segue a caminhada atrás dos bons amigos,
chá ao lado de uma garota, um punhado infame
de poemas (se dignos) com o autor por perto,
um patrono bonacho, um porre de cerveja,
a obra-mestra de Haydon, o café gelado
de madrugada quando a Musa atiça os nervos,
a voz do Sr. Coleridge, um lenço afrancesado
sobre a poça a todo passo, batuque e fumo,
um maldito vizinho grudado à sua flauta -
todos estes são vis. Porém mais vil
é o soneto de Wordsworth sobre Dover.

Dover! Quem poderia escrever aquilo?

*

'ALL THESE ARE VILE'.

The House of Mourning written by Mr. Scott,
a sermon at the Magdalen, a tear
dropped on a greasy novel, want of cheer
after a walk uphill to a friend's cot,
tea with a maiden lady, a cursed lot
of worthy poems with the author near,
a patron lord, a drunkenness from beer,
Haydon's great picture, a cold coffee pot
at midnight when the muse is ripe for labour,
the voice of Mr. Coleridge, a French bonnet
before you in the pit, a pipe and tabour,
a damned inseparable flute and neighbour -
all these are vile. But viler Wordsworth's sonnet
on Dover. Dover! Who could write upon it?

* * * * *

A vile choice, I assume, o décimo-quinto verso completando o soneto. Não encontro maneiras de suprimir um 'mais vil ainda', trad. do mínimo britânico 'viler'. De fato, o inglês é uma língua sonoramente mais concisa que o português. Rimas, igualmente, não foram vertidas perfeitamente, por acreditar que o poema ficaria açucarado (greasy; gorduroso) se assim procedesse. Recolhi rimas toantes, atentando à métrica (pentâmetros iâmbicos em alexandrinos; com exceção do tríptico final) e ao ritmo.

Logo mais, Moby-Dick.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Why translate, I [thoughts after Byron]


Ó dura ilia messorum! 'Ó
ferrenhas tripas dos ceifeiros!' Verto
ao bem maior daqueles que conhecem
a vil indigestão - aquela sorte
qual todo Estige em rio de bile corre.
O suor servil vale aos bens senhoriais.

Um por pão trabalha, o outro as contas paga;
e o que bem dorme seja o mais afortunado.

*

Oh dura ilia messorum! 'Oh
ye rigid guts of reapers!' I translate
for the great benefit of those who know
what indigestion is - that inward fate
which makes all Styx through one small liver flow.
A peasant's sweat is worth his lord's estate.
Let this one toil for bread, that rack for rent;
he who sleeps best may be the most content.


[George Gordon, Lord Byron; Don Juan, Canto IX : XV, vv.113-120]

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Les tombales

Ao passo que preparo traduções mais cuidadosas do Moby-Dick, um pouco de Yeats e texto sobre o Caedmon's Hymn, resolvi verter um conto de Guy de Maupassant ao português, Les tombales. Original de 1891, linhas quase finais do contista que morreria dois anos mais tarde. Do autor, basta saber que ele 'inventou' o conto moderno - a short story - de estilo sóbrio e concentrado, na procura de uma linguagem 'clara, lógica e incisiva', calcada na precisão emotiva de Hoffmann e de Poe mas rompendo com a escrita vaga(rosa) e eufônica da obra poética do último; circulou entre o conto, a novela, e o romance; e aportou à crítica do romantismo decrépito. Surge o conto abaixo neste viés, mistura de ironia byroniana com a ânsia psicologizante da escola realista. Maupassant, pas de nouvelles, tira sarro de ambos.
Menciona-se também a dimensão 'sobrenatural' em seus contos: diferente dos decadentes e dos românticos, o autor procurou, uma vez mais como Poe, 'contornar' o sobrenatural no cotidiano, nas situações inexplicáveis mas mundanas, palpáveis. Dúbio dizer que isso 'prenuncia' alguma coisa, de acordo com cartilhas teleológicas da literatura; mas, certamente, Maupassant foi mestre daquilo que Shklovsky cunharia como остранение, 'defamiliarização' ou o mais conhecido 'estranhamento'.
Deveras instigante foi a vida do normando. Sua produção confina-se no curto decênio 1880-90, período no qual dominou as letras francesas; e, em duas décadas, conheceu Flaubert, seu maître; Zola, Dumas e Turgeniev através do autor de Madame Bovary; e também Swinburne, num episódio inusitado - Maupassant o salvou de afogamento. Morto de sífilis, incompletos seus 43 anos, louco, escrevera anos antes, "Je suis entré dans la littérature comme un météore, j'en sortirai comme un coup de foudre".
Maupassant descansa no Cemitério de Montparnasse, em Paris.

Montmartre, Paris, em 1900.


* * * * *

AS LAPIDÁRIAS.

Encontravam-se à mesa, os cinco amigos; cinco homens do mundo, maduros, ricos, três casados, dois ainda solteiros. Reuniam-se todo mês, em memória de sua juventude; após o jantar, conversavam até as duas da manhã. Continuavam íntimos, divertiam-se, os amigos, e lá passaram talvez as melhores noites de suas vidas. Tagarelavam sobre tudo, sobre tudo que distrai e deleita os Parisienses; entre eles discutia-se, como noutros salões afora, as notícias lidas nos jornais matutinos.
Dos mais divertidos sobressaía Joseph de Bardon, solteiro e
vivant da vida parisiense em seus limites mais absolutos e fantásticos. Decerto não era depravado ou debochado, senão curioso, brincalhão, jovial ainda; somava apenas quarenta anos. Homem do mundo no sentido mais amplo e indulgente que pudesse merecer tal termo, dono de muito talento sem grande profundidade, de extenso conhecimento sem erudição verdadeira, de ágil compreensão sem penetração séria, tirava suas conclusões e histórias de tudo que viu, encontrou e descobriu, acumulando anedotas de romances, cômicos e filosóficos, e pinçadas irônicas que lhe deram por toda Paris grande reputação de inteligência.
Era o orador do jantar. Tinha-a ele, toda vez, uma história de prontidão, a qual escutávamos com atenção. Pôs-se a contá-la, sem que o pedissem.
Fumando, sobre a mesa os cotovelos, uma taça de champagne fino meio cheia lhe encarando, envolto numa atmosfera de tabaco aromatizado pelo vapor do café, bastante à vontade, como aqueles que têm domínio sobre seu próprio eu, nalguns lugares e nalguns momentos, como o devoto numa igreja, como o peixe róseo em seu aquário.
Disse, entre duas baforadas:
- Lembrei-me de um evento singular, ocorrido há algum tempo.
Quase em uníssono moveram-se as bocas, "Conte".
Retrucou:
- Com prazer. Sabem vocês que eu perambulo bastante por Paris, como os bibelômanos que inspecionam as vitrines. Já eu observo os espetáculos, a populaça, tudo que passa e tudo que se passa.
Então, nos meados de setembro, dias de clima assaz agradável, saí de casa à tarde, a esmo. Em todo homem há um vago anseio de encontrar uma garota, não importa a hora. Escolhemo-las como numa galeria, comparamo-las no pensamento, pesamos o interesse que nos inspiram, o charme que nos destilam e por fim decidimos segundo a atração do dia. Mas quando o sol é cálido e o ar lânguido, não raro ambos tiram todo ânimo para tais encontros.
O sol era cálido, e o ar lânguido; acendi um charuto e meti-me estupidamente na avenida exterior. Enquanto flanava, possuiu-me a idéia de ir até o Cemitério de Montmartre e lá entrar.
Eu amo os cemitérios, eles me transmitem sossego e melancolia: preciso deles. E depois, neles há ótimos amigos, daqueles que não poderemos ver novamente; eu os visito, de vez em quando.
Tenho justamente no cemitério de Montmartre uma história de paixão, uma amante que havia me conquistado irresistivelmente, uma garotinha encantadora cuja lembrança, ao passo que me desperta pesar insuportável, me dá saudade... saudades de toda natureza... E sobre sua tumba sonharei... Para ela está tudo acabado.
Vez mais, amo os cemitérios por serem cidades fúnebres, prodigiosamente habitadas. Imagine quantos mortos restam naquele lugar pequenino, quantas gerações lá se alojam, para sempre, verdadeiros trogloditas confinados em covas minúsculas, em simples buracos cobertos com uma pedra ou sinalizados por uma cruz, enquanto os vivos ocupam tanto espaço e fazem tanto barulho, esses imbecis.
Mais ainda, nos cemitérios há monumentos quase tão interessantes quanto os dos museus. O túmulo de Cavaignac me lembra, confesso, sem titular comparações, a obra-prima de Jean Goujon: o corpo de Louis de Brézé, deitado na capela subterrânea da catedral de Rouen; toda arte dita moderna e realista veio de lá, senhores. O falecido, Louis de Brézé, é mais realista, mais terrível, e mais cheio de carne inanimada, ainda espasmada pela dor, que todos os defuntos torturados que hoje se amontoam a granel sobre as tumbas.
Entretanto, no cemitério Montmartre pode-se, além, admirar o monumento de Baudin, sublime; o de Gautier, o de Mürger; outro dia vi uma solitária e mísera coroa de ervas-de-São-João, imortais, quem as arranjou? a última amante, macaca velha nos arredores, talvez? É uma bela estátua de Millet, mas o descaso e a sujeira a destroem. Canta a Juventude, ó Mürger!
Vi-me então entrar no cemitério Montmartre, e fui repentinamente tomado pela tristeza, por uma tristeza que não doía tanto, mas outra, tristeza que nos faz refletir, quando admitimos: 'Não é nada leviano, este lugar, mas ainda não chegou a minha hora...'
A impressão do outono, daquele mormaço lânguido que exala a morte das folhas e o sol abatido, cansado, anêmico, enaltece poeticamente a sensação da solitude e do fim definitivo que flutuam sobre o local, este que exala a morte dos homens.
Caminhava a passos curtos entre as vielas e tumbas, onde os vizinhos não se podem avizinhar, nem fazer amor, nem ler o jornal. Então comecei a ler os epitáfios. Esta talvez seja a atividade mais divertida do mundo. Jamais Labiche, jamais Meilhac me fariam rir como a comicidade da prosa funerária. Ah! quais livros, melhores que àqueles de Paul de Kock, para dar boas gargalhadas que essas placas de mármore e essas cruzes onde os parentes do morto desabafam seus lamentos, seus votos para a boa jornada ao além-mundo, e sua espera pelo reencontro - hipócritas!
Mas sobretudo gosto, nos cemitérios, do lado abandonado, solitário, pleno de teixos enormes e ciprestes, velho setor dos mortos antigos que breve serão realocados a novo setor no qual serão abatidas as árvores verdes, nutridas de defuntos humanos, para que se alinhem os recém-falecidos em estreitas galerias de mármore.
Enquanto vagava afim de refrescar o espírito, percebi que me entediava e que logo precisaria levar à última cama de minha amante condolênscias dignas de minha memória. Tinha o coração apertado ao aproximar-me de sua tumba. Pobre querida, era tão gentil, e tão passional, e tão branca, e tão frágil... e agora... se cá abrissemos...
Escorando na grade de ferro, confessei-lhe baixinho minha angústia - ela certamente não a escutou. E partia, quando vejo uma mulher de negro, em luto, derramando-se sobre o túmulo vizinho. Seu véu de cetim levantado revelava uma bela cabeça dourada, na qual fitas louras assemelhavam-se ao fulgor da aurora despontando o negrume de seu véu. Me detive.
Sem dúvidas, devia-lhe pesar um sofrimento profundo. Ela havia enterrado sua face nas mãos, e rija, numa medição estatuária, absorta em seus remorsos, compostos na sombra dos olhos ocultos contra o doloroso rosário da memória, ela mesma parecia estar morta, um cadáver que recordava a outro. De repente pressenti tê-la visto chorar, suas costas pequeninas oscilavam em cesura, qual brisa roçando os salgueiros. Ela de início chorava baixinho, logo mais forte, entre espasmos da nuca e ombros. Súbita descobriu seus olhos. Estavam cheios de lágrimas e fascinantes, olhos da loucura que, deslocados em torno de si, remetiam ao despertar de um pesadelo. Ela percebeu que eu a olhava, envergonhou-se e novamente escondeu a face entre as mãos. Agora seus soluços tornaram-se convulsos, e sua cabeça afundava lentamente no mármore. Nele repousou a testa, e seu véu estendeu-se pelos cantos alvos da sepultura querida, assim a cobrindo como o luto renovado. Eu a percebi gemer, aos soçobros na laje, e caiu inconsciente, sem se mexer.
Aproximei-me dela, agarrei-lhe as mãos, soprei-lhe as pálpebras, tudo enquanto lia o epitáfio tão simples: 'Aqui jaz Louis-Théodore Carrel, capitão da infantaria marinha, morto pelo inimigo, em Tonkin. Orai por ele.'
Morrera há alguns meses. Comovido a ponto de chorar, engoli as lágrimas. Ative-me: ela se recompôs. Tentava eu manter a compostura - faço boa figura, não tenho nem quarenta anos. Compreendi à primeira vista que ela era educada e distinta. Ela o foi, entre lágrimas alheias, e contou sua história, espalmada dos escombros de seu peito ofegante, a morte do oficial expirado em Tonkin, ao cabo de um ano de casamento, após tê-la desposado por amor, pois, orfã de pai e mãe, tinha ela apenas o dote regulamentar.
Eu a consolei, a reconfortei, a segurei, a levantei. Então lhe falei:
- Não fique aqui. Venha.
Ela murmurou:
- Não consigo andar.
- Vou lhe apoiar.
- Obrigado, senhor, pela gentileza. Você veio aqui também para chorar um falecido?
- Sim, madame.
- Uma morta?
- Sim, madame.
- Sua esposa?
- Uma amiga.
- Pode-se amar a uma amiga como a uma esposa, a paixão não tem lei.
- Sim, madame.
E então partimos juntos, ela apoiando-se em mim, eu a conduzindo pelos caminhos do cemitério. Quando saímos, ela murmurou, vacilante:
- Acho que vou desmaiar.
- Quer ir a algum lugar, comer alguma coisa?
- Sim, senhor.
Encontrei um restaurante, daqueles restaurantes onde os amigos do morto vão festejar a última corvéia. Entramos. Fiz ela beber uma xícara de café bem quente para reanimá-la. Um vago sorriso surgiu-lhe dos lábios. E ela me falou dele. Estava tão triste, tão triste de ser tão solitária na vida, tão ensimesmada, noite e dia, de não ter quem lhe desse carinho, confiança, intimidade.
Pareceu sincera; falava delicadamente, com voz suave. Eu me seguraria. Ela era muito jovem, talvez vinte anos. Fiz-lhe elogios que ela aceitou de bom grado. Logo fiava a hora, e eu lhe propus levar para casa, de carro. Ela aceitou: e, durante a jornada, colamo-nos os ombros, um contra o outro, e nosso calor misturava-se sob as vestes, o que é certamente a coisa mais perturbadora do mundo.
Quando o carro chegou em sua casa, ela murmurou: 'Sinto-me incapaz de subir as escadas sozinha, moro no quarto andar. Você foi muito gentil, poderia me emprestar o braço mais um pouquinho até meus aposentos?'
Aceitei de prontidão. A suspiros muitos, ela subiu a escada lentamente. Até que, em frente a sua porta, ela disse:
- Entre por alguns instantes para que eu possa lhe agradecer.
E eu então entrei, caramba.
Seu quarto era modesto, um pouco pobre até, mas simples e bem arrumado.
Sentamo-nos lado a lado num pequeno sofá, e uma vez mais falou-me ela de sua solidão.
Chamou sua camareira, afim de me servir alguma coisa pra beber. Não veio, a camareira. Fiquei pensando com meus botões se esta não trabalhava só as manhãs, se não seria aquilo que chamamos de diarista.
Ela tirara o chapéu. Sua beleza era verdadeira em seus olhos claros, fixados nos meus, fixados demais, claros demais para a tentação: tive-a, e cedi. Tomei-lhe nos braços, e sobre as pálpebras que se subitamente fecharam, enchi-lhe de beijos... mil, depois um cento, e mil outros depois, mais outros cem.
A princípio, resistiu, afastando-me e repetindo: 'Acabe... acabe... acabe logo com isso.'
Qual sentido dava ela a tal palavra? Em casos semelhantes, 'acabar' pode ter ao menos dois. Dei-lhe o que bem entendi, passando dos olhos à boca, em silêncio. Não mais resistiu, e quando nos olhamos novamente, depois desta afronta à memória do capitão morto em Tonkin, tinha ela um ar lânguido, reticente, resignado, que dissipou minhas inquietudes.
Em seguida, fui delicado, apreensivo e atensioso. E após mais uma hora de causalidades, perguntei-lhe:
- Onde você janta?
- Num restaurantezinho nos arredores.
- Sozinha?
- Mas claro.
- Quer jantar comigo?
- Mas onde?
- Num bom restaurante, na avenida.
Resistiu um pouco. Insisti: cedeu, ao considerar a proposta: 'Me fatigo tanto... tanto,' no que ela adicionou: 'Devo vestir algo menos sombrio.'
Entrou em seu quarto.
Quando saiu, ela estava em semi-luto, encantadora, magra e esbelta, com um vestido cinza e singelo. Tinha ela roupa de cemitério e roupa de cidade, evidentemente.
O jantar foi bastante cordial. Ela bebeu champagne, radiou-se, animou-se e consigo lhe acompanhei para casa.
Aquela relação nascida nos túmulos durou o total de três semanas. Mas de tudo se cansa, principalmente das mulheres. Deixei-a sob o pretexto de uma viagem inadiável. Ao partir, fui-lhe gentil, na medida do possível, ela me agradeceu muito. Fez-me prometer, fez-me jurar que a veria quando voltasse, pois ela parecia um pouco ligada a mim.
Fugi para outras paragens, e logo passou um mês sem que a vontade de rever aquela garotinha fúnebre fosse suficientemente forte para que eu lhe cedesse. Muito embora, não a havia esquecido... Sua lembrança me assombrava como um mistério, como um trauma psicológico, como uma dessas questões inexplicáveis cuja solução nos escapa.
Não sei porque, um dia, imaginei que eu a reencontraria no cemitério Montmartre, e lá fui.
Caminhei demoradamente e encontrava senão os visitantes comuns do local, aqueles que não podem mais romper relações com seus mortos. O túmulo do capitão morto em Tonkin não tinha mais o mármore repleto de choro, tampouco tinha flores, nem coroas de flores.
Mas, conforme me enfiava num outro setor daquela grande urbe de apresuntados, de repente percebi, no cruzamento entre avenidas, vindo até mim, um casal em luto, homem e mulher. Ah estupidez! quando se aproximaram, reconheci-a.
Era ela.
Viu-me, enrusbeceu e, como eu lhe trombei na curva, fez-me um pequeno sinal, um olhar que dizia: 'Você não me conhece,' mas cujo semblante também dizia: 'Venha me ver, querido.'
O homem era polido, distinto, arrumado, oficial da Legião de Honra, talvez uns cinquenta anos.
E ele a apoiava, como eu mesmo lhe havia apoiado antes, ao sair do cemitério.
Fiquei estupefato, confabulando sobre o que acabara de presenciar, a que raça de seres pertenceria esta caçadora sepulcral. Era ela uma garota comezinha, puta inspirada que predava sobre as tumbas os homens tristes, assombrados por amigas, esposas ou amantes, e ainda afligidos pela memória das carícias já perdidas? Era única? São muitas? É uma profissão? Fazem no cemitário como nas calçadas? As Lapidárias! Ou foi ela a primeira a ter esta idéia admirável, a profunda filosofia de explorar os remorsos de amor reacendidos nesses vãos funerários?
E eu bem que queria saber de quem ela havia enviuvado, aquele dia.


[conto publicado originalmente na revista Gil Blas, em 1891;
antologizado no mesmo ano em La maison Tellier.]


* * * * *

Maupassant, auteur du patrimonie français, foi contemplado em inúmeras edições. Curadas, anotadas, exaustivamente pesquisadas são as da Bibliothèque de la Pléiade, referência - no vol.2 encontra-se o texto de base de Les tombales usado para esta tradução. Si tu as pas d'argent, a Gallimard disponibiliza edições mais baratas, em brochura, correntes em média de EUR 6.00 cada, alguns a menos de EUR 3.00 - Boule de suif, par ex.
No Brasil, excelente tradução é a de Amílcar Bettega aos 125 contos, da Companhia das Letras. Les tombales também estão lá como As sepulcrais. Traduzi o título como As lapidárias - tombale é a lápide portuguesa - pela conceitualização indesejável do termo sepulcro nesta versão mais descaradamente pervertida.

Guy de Maupassant é deveras semelhante a Mark Twain - a mesma misantropia, o ódio para com a sociedade burguesa, o gênio solitário, a boca sem eiras, e corte similar do bigode em juventude. E Maupassant também me lembra Henry James em sua objetividade imagética. Du tout, o Spencer Brydon de The Jolly Corner muito aprendeu, em seu estilo tardio, com o francês.