sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

All these are vile

Tendo recomeçado o ano acadêmico - o último no Dept. de História -, e confrontado com burocracias mil nesta última semana, não consegui ainda terminar a tradução de mais três capítulos do Moby-Dick, os quais seguem tão-logo sopre Noto (promessa factível neste Fevereiro so full of frost, of storm, and cloudiness). No mais, termino a nota histórica sobre W. B. Yeats; e reviso as traduções que fiz de Manuel Bandeira ao inglês, ao longo dos meses que morei na Inglaterra & agora, versões estas que pretendo ver publicadas algum dia.
Traduzi hoje mesmo e como exercício o soneto aí embaixo, do Britishe nightingale John Keats. Posterior ao primeiro romantismo inglês (Wordsworth e Coleridge), o poeta dificilmente pode ser 'encaixado' na geração seguinte. Figura insólita, morreu jovem (1821, aos 26 anos), e seu verso muito tem da imagética neoclassicista, embora livre do pedantismo eufônico dos dísticos heróicos; ao passo que sua sintaxe, em anacolutos e hipérbatos, o aproxima da flexibilidade do byronismo; e sua prosódia cheia de sinuosidades rítmicas já prenuncia o sprung rhythm de Gerard Manley Hopkins.
a
No, no, got not to Lethe, neither twist
wolf's-bane, tight-rooted, for its poisonous wine;

Na Ode on Melancholy (trad. por Péricles Eugênio da Silva Ramos e disponível num livreto da hedra). O diletante encontrará boa seleção de Keats, mais uma vez, pela Norton, acompanhando ensaios críticos. Seus poemas completos foram publicados pela Modern Library. Péricles; e também A. de Campos verteu o poeta ao português, no Entreversos (Unicamp) em conjunto com Byron.
Keats, assaz criticado em sua época, acusado de ininteligibilidade & hermetismo, fora destarte admirado por contemporâneos do quilate de Shelley (que lhe dedicou o Adonais) e Byron. E, como seus jovens companheiros, morreu ex patria, sepultado no Cimitero accatolico di Roma, onde também jaz o afogado Alastor. Em sua lápide, não há seu nome, lê-se apenas, ao ânimo anacreôntico deste que foi admirador ímpar dos clássicos,

This grave
contains all that was mortal,
of a
YOUNG ENGLISH POET
Who,
In his Death-Bed,
In the Bitterness of his Heart,
At the Malicious Power of his Enemies,
Desired
These Words to be engraven on his Tomb Stone,
"Here lies One whose Name was writ in Water."

*

Esta tumba
contém todo que era mortal,
de um
JOVEM POETA INGLÊS
Que,
Em seu Leito-de-Morte,
No Amargor de seu Coração,
Frente ao Poder Malicioso de seus Inimigos,
Desejou
Tais Palavras a serem cravadas em sua Lápide,
"Aqui jaz Um cujo Nome grafou-se em Água."


John Keats em seu leito de morte, por Joseph Severn

* * * * *

'TODOS ESTES SÃO VIS'.

Os versos da
Mansão do Luto do Sr. Scott,
um sermão lá na Santa Madalena, o choro
que esparrama num conto açucarado, o gozo
que segue a caminhada atrás dos bons amigos,
chá ao lado de uma garota, um punhado infame
de poemas (se dignos) com o autor por perto,
um patrono bonacho, um porre de cerveja,
a obra-mestra de Haydon, o café gelado
de madrugada quando a Musa atiça os nervos,
a voz do Sr. Coleridge, um lenço afrancesado
sobre a poça a todo passo, batuque e fumo,
um maldito vizinho grudado à sua flauta -
todos estes são vis. Porém mais vil
é o soneto de Wordsworth sobre Dover.

Dover! Quem poderia escrever aquilo?

*

'ALL THESE ARE VILE'.

The House of Mourning written by Mr. Scott,
a sermon at the Magdalen, a tear
dropped on a greasy novel, want of cheer
after a walk uphill to a friend's cot,
tea with a maiden lady, a cursed lot
of worthy poems with the author near,
a patron lord, a drunkenness from beer,
Haydon's great picture, a cold coffee pot
at midnight when the muse is ripe for labour,
the voice of Mr. Coleridge, a French bonnet
before you in the pit, a pipe and tabour,
a damned inseparable flute and neighbour -
all these are vile. But viler Wordsworth's sonnet
on Dover. Dover! Who could write upon it?

* * * * *

A vile choice, I assume, o décimo-quinto verso completando o soneto. Não encontro maneiras de suprimir um 'mais vil ainda', trad. do mínimo britânico 'viler'. De fato, o inglês é uma língua sonoramente mais concisa que o português. Rimas, igualmente, não foram vertidas perfeitamente, por acreditar que o poema ficaria açucarado (greasy; gorduroso) se assim procedesse. Recolhi rimas toantes, atentando à métrica (pentâmetros iâmbicos em alexandrinos; com exceção do tríptico final) e ao ritmo.

Logo mais, Moby-Dick.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Why translate, I [thoughts after Byron]


Ó dura ilia messorum! 'Ó
ferrenhas tripas dos ceifeiros!' Verto
ao bem maior daqueles que conhecem
a vil indigestão - aquela sorte
qual todo Estige em rio de bile corre.
O suor servil vale aos bens senhoriais.

Um por pão trabalha, o outro as contas paga;
e o que bem dorme seja o mais afortunado.

*

Oh dura ilia messorum! 'Oh
ye rigid guts of reapers!' I translate
for the great benefit of those who know
what indigestion is - that inward fate
which makes all Styx through one small liver flow.
A peasant's sweat is worth his lord's estate.
Let this one toil for bread, that rack for rent;
he who sleeps best may be the most content.


[George Gordon, Lord Byron; Don Juan, Canto IX : XV, vv.113-120]

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Les tombales

Ao passo que preparo traduções mais cuidadosas do Moby-Dick, um pouco de Yeats e texto sobre o Caedmon's Hymn, resolvi verter um conto de Guy de Maupassant ao português, Les tombales. Original de 1891, linhas quase finais do contista que morreria dois anos mais tarde. Do autor, basta saber que ele 'inventou' o conto moderno - a short story - de estilo sóbrio e concentrado, na procura de uma linguagem 'clara, lógica e incisiva', calcada na precisão emotiva de Hoffmann e de Poe mas rompendo com a escrita vaga(rosa) e eufônica da obra poética do último; circulou entre o conto, a novela, e o romance; e aportou à crítica do romantismo decrépito. Surge o conto abaixo neste viés, mistura de ironia byroniana com a ânsia psicologizante da escola realista. Maupassant, pas de nouvelles, tira sarro de ambos.
Menciona-se também a dimensão 'sobrenatural' em seus contos: diferente dos decadentes e dos românticos, o autor procurou, uma vez mais como Poe, 'contornar' o sobrenatural no cotidiano, nas situações inexplicáveis mas mundanas, palpáveis. Dúbio dizer que isso 'prenuncia' alguma coisa, de acordo com cartilhas teleológicas da literatura; mas, certamente, Maupassant foi mestre daquilo que Shklovsky cunharia como остранение, 'defamiliarização' ou o mais conhecido 'estranhamento'.
Deveras instigante foi a vida do normando. Sua produção confina-se no curto decênio 1880-90, período no qual dominou as letras francesas; e, em duas décadas, conheceu Flaubert, seu maître; Zola, Dumas e Turgeniev através do autor de Madame Bovary; e também Swinburne, num episódio inusitado - Maupassant o salvou de afogamento. Morto de sífilis, incompletos seus 43 anos, louco, escrevera anos antes, "Je suis entré dans la littérature comme un météore, j'en sortirai comme un coup de foudre".
Maupassant descansa no Cemitério de Montparnasse, em Paris.

Montmartre, Paris, em 1900.


* * * * *

AS LAPIDÁRIAS.

Encontravam-se à mesa, os cinco amigos; cinco homens do mundo, maduros, ricos, três casados, dois ainda solteiros. Reuniam-se todo mês, em memória de sua juventude; após o jantar, conversavam até as duas da manhã. Continuavam íntimos, divertiam-se, os amigos, e lá passaram talvez as melhores noites de suas vidas. Tagarelavam sobre tudo, sobre tudo que distrai e deleita os Parisienses; entre eles discutia-se, como noutros salões afora, as notícias lidas nos jornais matutinos.
Dos mais divertidos sobressaía Joseph de Bardon, solteiro e
vivant da vida parisiense em seus limites mais absolutos e fantásticos. Decerto não era depravado ou debochado, senão curioso, brincalhão, jovial ainda; somava apenas quarenta anos. Homem do mundo no sentido mais amplo e indulgente que pudesse merecer tal termo, dono de muito talento sem grande profundidade, de extenso conhecimento sem erudição verdadeira, de ágil compreensão sem penetração séria, tirava suas conclusões e histórias de tudo que viu, encontrou e descobriu, acumulando anedotas de romances, cômicos e filosóficos, e pinçadas irônicas que lhe deram por toda Paris grande reputação de inteligência.
Era o orador do jantar. Tinha-a ele, toda vez, uma história de prontidão, a qual escutávamos com atenção. Pôs-se a contá-la, sem que o pedissem.
Fumando, sobre a mesa os cotovelos, uma taça de champagne fino meio cheia lhe encarando, envolto numa atmosfera de tabaco aromatizado pelo vapor do café, bastante à vontade, como aqueles que têm domínio sobre seu próprio eu, nalguns lugares e nalguns momentos, como o devoto numa igreja, como o peixe róseo em seu aquário.
Disse, entre duas baforadas:
- Lembrei-me de um evento singular, ocorrido há algum tempo.
Quase em uníssono moveram-se as bocas, "Conte".
Retrucou:
- Com prazer. Sabem vocês que eu perambulo bastante por Paris, como os bibelômanos que inspecionam as vitrines. Já eu observo os espetáculos, a populaça, tudo que passa e tudo que se passa.
Então, nos meados de setembro, dias de clima assaz agradável, saí de casa à tarde, a esmo. Em todo homem há um vago anseio de encontrar uma garota, não importa a hora. Escolhemo-las como numa galeria, comparamo-las no pensamento, pesamos o interesse que nos inspiram, o charme que nos destilam e por fim decidimos segundo a atração do dia. Mas quando o sol é cálido e o ar lânguido, não raro ambos tiram todo ânimo para tais encontros.
O sol era cálido, e o ar lânguido; acendi um charuto e meti-me estupidamente na avenida exterior. Enquanto flanava, possuiu-me a idéia de ir até o Cemitério de Montmartre e lá entrar.
Eu amo os cemitérios, eles me transmitem sossego e melancolia: preciso deles. E depois, neles há ótimos amigos, daqueles que não poderemos ver novamente; eu os visito, de vez em quando.
Tenho justamente no cemitério de Montmartre uma história de paixão, uma amante que havia me conquistado irresistivelmente, uma garotinha encantadora cuja lembrança, ao passo que me desperta pesar insuportável, me dá saudade... saudades de toda natureza... E sobre sua tumba sonharei... Para ela está tudo acabado.
Vez mais, amo os cemitérios por serem cidades fúnebres, prodigiosamente habitadas. Imagine quantos mortos restam naquele lugar pequenino, quantas gerações lá se alojam, para sempre, verdadeiros trogloditas confinados em covas minúsculas, em simples buracos cobertos com uma pedra ou sinalizados por uma cruz, enquanto os vivos ocupam tanto espaço e fazem tanto barulho, esses imbecis.
Mais ainda, nos cemitérios há monumentos quase tão interessantes quanto os dos museus. O túmulo de Cavaignac me lembra, confesso, sem titular comparações, a obra-prima de Jean Goujon: o corpo de Louis de Brézé, deitado na capela subterrânea da catedral de Rouen; toda arte dita moderna e realista veio de lá, senhores. O falecido, Louis de Brézé, é mais realista, mais terrível, e mais cheio de carne inanimada, ainda espasmada pela dor, que todos os defuntos torturados que hoje se amontoam a granel sobre as tumbas.
Entretanto, no cemitério Montmartre pode-se, além, admirar o monumento de Baudin, sublime; o de Gautier, o de Mürger; outro dia vi uma solitária e mísera coroa de ervas-de-São-João, imortais, quem as arranjou? a última amante, macaca velha nos arredores, talvez? É uma bela estátua de Millet, mas o descaso e a sujeira a destroem. Canta a Juventude, ó Mürger!
Vi-me então entrar no cemitério Montmartre, e fui repentinamente tomado pela tristeza, por uma tristeza que não doía tanto, mas outra, tristeza que nos faz refletir, quando admitimos: 'Não é nada leviano, este lugar, mas ainda não chegou a minha hora...'
A impressão do outono, daquele mormaço lânguido que exala a morte das folhas e o sol abatido, cansado, anêmico, enaltece poeticamente a sensação da solitude e do fim definitivo que flutuam sobre o local, este que exala a morte dos homens.
Caminhava a passos curtos entre as vielas e tumbas, onde os vizinhos não se podem avizinhar, nem fazer amor, nem ler o jornal. Então comecei a ler os epitáfios. Esta talvez seja a atividade mais divertida do mundo. Jamais Labiche, jamais Meilhac me fariam rir como a comicidade da prosa funerária. Ah! quais livros, melhores que àqueles de Paul de Kock, para dar boas gargalhadas que essas placas de mármore e essas cruzes onde os parentes do morto desabafam seus lamentos, seus votos para a boa jornada ao além-mundo, e sua espera pelo reencontro - hipócritas!
Mas sobretudo gosto, nos cemitérios, do lado abandonado, solitário, pleno de teixos enormes e ciprestes, velho setor dos mortos antigos que breve serão realocados a novo setor no qual serão abatidas as árvores verdes, nutridas de defuntos humanos, para que se alinhem os recém-falecidos em estreitas galerias de mármore.
Enquanto vagava afim de refrescar o espírito, percebi que me entediava e que logo precisaria levar à última cama de minha amante condolênscias dignas de minha memória. Tinha o coração apertado ao aproximar-me de sua tumba. Pobre querida, era tão gentil, e tão passional, e tão branca, e tão frágil... e agora... se cá abrissemos...
Escorando na grade de ferro, confessei-lhe baixinho minha angústia - ela certamente não a escutou. E partia, quando vejo uma mulher de negro, em luto, derramando-se sobre o túmulo vizinho. Seu véu de cetim levantado revelava uma bela cabeça dourada, na qual fitas louras assemelhavam-se ao fulgor da aurora despontando o negrume de seu véu. Me detive.
Sem dúvidas, devia-lhe pesar um sofrimento profundo. Ela havia enterrado sua face nas mãos, e rija, numa medição estatuária, absorta em seus remorsos, compostos na sombra dos olhos ocultos contra o doloroso rosário da memória, ela mesma parecia estar morta, um cadáver que recordava a outro. De repente pressenti tê-la visto chorar, suas costas pequeninas oscilavam em cesura, qual brisa roçando os salgueiros. Ela de início chorava baixinho, logo mais forte, entre espasmos da nuca e ombros. Súbita descobriu seus olhos. Estavam cheios de lágrimas e fascinantes, olhos da loucura que, deslocados em torno de si, remetiam ao despertar de um pesadelo. Ela percebeu que eu a olhava, envergonhou-se e novamente escondeu a face entre as mãos. Agora seus soluços tornaram-se convulsos, e sua cabeça afundava lentamente no mármore. Nele repousou a testa, e seu véu estendeu-se pelos cantos alvos da sepultura querida, assim a cobrindo como o luto renovado. Eu a percebi gemer, aos soçobros na laje, e caiu inconsciente, sem se mexer.
Aproximei-me dela, agarrei-lhe as mãos, soprei-lhe as pálpebras, tudo enquanto lia o epitáfio tão simples: 'Aqui jaz Louis-Théodore Carrel, capitão da infantaria marinha, morto pelo inimigo, em Tonkin. Orai por ele.'
Morrera há alguns meses. Comovido a ponto de chorar, engoli as lágrimas. Ative-me: ela se recompôs. Tentava eu manter a compostura - faço boa figura, não tenho nem quarenta anos. Compreendi à primeira vista que ela era educada e distinta. Ela o foi, entre lágrimas alheias, e contou sua história, espalmada dos escombros de seu peito ofegante, a morte do oficial expirado em Tonkin, ao cabo de um ano de casamento, após tê-la desposado por amor, pois, orfã de pai e mãe, tinha ela apenas o dote regulamentar.
Eu a consolei, a reconfortei, a segurei, a levantei. Então lhe falei:
- Não fique aqui. Venha.
Ela murmurou:
- Não consigo andar.
- Vou lhe apoiar.
- Obrigado, senhor, pela gentileza. Você veio aqui também para chorar um falecido?
- Sim, madame.
- Uma morta?
- Sim, madame.
- Sua esposa?
- Uma amiga.
- Pode-se amar a uma amiga como a uma esposa, a paixão não tem lei.
- Sim, madame.
E então partimos juntos, ela apoiando-se em mim, eu a conduzindo pelos caminhos do cemitério. Quando saímos, ela murmurou, vacilante:
- Acho que vou desmaiar.
- Quer ir a algum lugar, comer alguma coisa?
- Sim, senhor.
Encontrei um restaurante, daqueles restaurantes onde os amigos do morto vão festejar a última corvéia. Entramos. Fiz ela beber uma xícara de café bem quente para reanimá-la. Um vago sorriso surgiu-lhe dos lábios. E ela me falou dele. Estava tão triste, tão triste de ser tão solitária na vida, tão ensimesmada, noite e dia, de não ter quem lhe desse carinho, confiança, intimidade.
Pareceu sincera; falava delicadamente, com voz suave. Eu me seguraria. Ela era muito jovem, talvez vinte anos. Fiz-lhe elogios que ela aceitou de bom grado. Logo fiava a hora, e eu lhe propus levar para casa, de carro. Ela aceitou: e, durante a jornada, colamo-nos os ombros, um contra o outro, e nosso calor misturava-se sob as vestes, o que é certamente a coisa mais perturbadora do mundo.
Quando o carro chegou em sua casa, ela murmurou: 'Sinto-me incapaz de subir as escadas sozinha, moro no quarto andar. Você foi muito gentil, poderia me emprestar o braço mais um pouquinho até meus aposentos?'
Aceitei de prontidão. A suspiros muitos, ela subiu a escada lentamente. Até que, em frente a sua porta, ela disse:
- Entre por alguns instantes para que eu possa lhe agradecer.
E eu então entrei, caramba.
Seu quarto era modesto, um pouco pobre até, mas simples e bem arrumado.
Sentamo-nos lado a lado num pequeno sofá, e uma vez mais falou-me ela de sua solidão.
Chamou sua camareira, afim de me servir alguma coisa pra beber. Não veio, a camareira. Fiquei pensando com meus botões se esta não trabalhava só as manhãs, se não seria aquilo que chamamos de diarista.
Ela tirara o chapéu. Sua beleza era verdadeira em seus olhos claros, fixados nos meus, fixados demais, claros demais para a tentação: tive-a, e cedi. Tomei-lhe nos braços, e sobre as pálpebras que se subitamente fecharam, enchi-lhe de beijos... mil, depois um cento, e mil outros depois, mais outros cem.
A princípio, resistiu, afastando-me e repetindo: 'Acabe... acabe... acabe logo com isso.'
Qual sentido dava ela a tal palavra? Em casos semelhantes, 'acabar' pode ter ao menos dois. Dei-lhe o que bem entendi, passando dos olhos à boca, em silêncio. Não mais resistiu, e quando nos olhamos novamente, depois desta afronta à memória do capitão morto em Tonkin, tinha ela um ar lânguido, reticente, resignado, que dissipou minhas inquietudes.
Em seguida, fui delicado, apreensivo e atensioso. E após mais uma hora de causalidades, perguntei-lhe:
- Onde você janta?
- Num restaurantezinho nos arredores.
- Sozinha?
- Mas claro.
- Quer jantar comigo?
- Mas onde?
- Num bom restaurante, na avenida.
Resistiu um pouco. Insisti: cedeu, ao considerar a proposta: 'Me fatigo tanto... tanto,' no que ela adicionou: 'Devo vestir algo menos sombrio.'
Entrou em seu quarto.
Quando saiu, ela estava em semi-luto, encantadora, magra e esbelta, com um vestido cinza e singelo. Tinha ela roupa de cemitério e roupa de cidade, evidentemente.
O jantar foi bastante cordial. Ela bebeu champagne, radiou-se, animou-se e consigo lhe acompanhei para casa.
Aquela relação nascida nos túmulos durou o total de três semanas. Mas de tudo se cansa, principalmente das mulheres. Deixei-a sob o pretexto de uma viagem inadiável. Ao partir, fui-lhe gentil, na medida do possível, ela me agradeceu muito. Fez-me prometer, fez-me jurar que a veria quando voltasse, pois ela parecia um pouco ligada a mim.
Fugi para outras paragens, e logo passou um mês sem que a vontade de rever aquela garotinha fúnebre fosse suficientemente forte para que eu lhe cedesse. Muito embora, não a havia esquecido... Sua lembrança me assombrava como um mistério, como um trauma psicológico, como uma dessas questões inexplicáveis cuja solução nos escapa.
Não sei porque, um dia, imaginei que eu a reencontraria no cemitério Montmartre, e lá fui.
Caminhei demoradamente e encontrava senão os visitantes comuns do local, aqueles que não podem mais romper relações com seus mortos. O túmulo do capitão morto em Tonkin não tinha mais o mármore repleto de choro, tampouco tinha flores, nem coroas de flores.
Mas, conforme me enfiava num outro setor daquela grande urbe de apresuntados, de repente percebi, no cruzamento entre avenidas, vindo até mim, um casal em luto, homem e mulher. Ah estupidez! quando se aproximaram, reconheci-a.
Era ela.
Viu-me, enrusbeceu e, como eu lhe trombei na curva, fez-me um pequeno sinal, um olhar que dizia: 'Você não me conhece,' mas cujo semblante também dizia: 'Venha me ver, querido.'
O homem era polido, distinto, arrumado, oficial da Legião de Honra, talvez uns cinquenta anos.
E ele a apoiava, como eu mesmo lhe havia apoiado antes, ao sair do cemitério.
Fiquei estupefato, confabulando sobre o que acabara de presenciar, a que raça de seres pertenceria esta caçadora sepulcral. Era ela uma garota comezinha, puta inspirada que predava sobre as tumbas os homens tristes, assombrados por amigas, esposas ou amantes, e ainda afligidos pela memória das carícias já perdidas? Era única? São muitas? É uma profissão? Fazem no cemitário como nas calçadas? As Lapidárias! Ou foi ela a primeira a ter esta idéia admirável, a profunda filosofia de explorar os remorsos de amor reacendidos nesses vãos funerários?
E eu bem que queria saber de quem ela havia enviuvado, aquele dia.


[conto publicado originalmente na revista Gil Blas, em 1891;
antologizado no mesmo ano em La maison Tellier.]


* * * * *

Maupassant, auteur du patrimonie français, foi contemplado em inúmeras edições. Curadas, anotadas, exaustivamente pesquisadas são as da Bibliothèque de la Pléiade, referência - no vol.2 encontra-se o texto de base de Les tombales usado para esta tradução. Si tu as pas d'argent, a Gallimard disponibiliza edições mais baratas, em brochura, correntes em média de EUR 6.00 cada, alguns a menos de EUR 3.00 - Boule de suif, par ex.
No Brasil, excelente tradução é a de Amílcar Bettega aos 125 contos, da Companhia das Letras. Les tombales também estão lá como As sepulcrais. Traduzi o título como As lapidárias - tombale é a lápide portuguesa - pela conceitualização indesejável do termo sepulcro nesta versão mais descaradamente pervertida.

Guy de Maupassant é deveras semelhante a Mark Twain - a mesma misantropia, o ódio para com a sociedade burguesa, o gênio solitário, a boca sem eiras, e corte similar do bigode em juventude. E Maupassant também me lembra Henry James em sua objetividade imagética. Du tout, o Spencer Brydon de The Jolly Corner muito aprendeu, em seu estilo tardio, com o francês.